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A CULPA É DO LULA
Por Gilberto de Mello Kujawski (*) em O Estado de São Paulo
Parece piada atribuir a Lula a derrota da seleção brasileira na Copa de 2006. E se fosse piada? Não é brincando que se dizem as verdades? Os humoristas ganham de qualquer cientista político na crítica aos desmandos da vida pública, desde o lendário Barão de Itararé até o boçalíssimo e debochado José Simão, passando pela finura de um Juca Chaves. A este se atribui o melhor comentário de que se tem notícia quando do alarde produzido por aquele correspondente norte-americano, Harry Rohter, denunciando que os brasileiros andavam muito preocupados com os exageros etílicos do presidente. Teria comentado Juca Chaves: "Ele pode beber à vontade, ele não dirige."
Só que desta vez não é piada. A relação de causa e efeito entre Luiz Inácio e o fracasso da seleção não é mais do que a expressão singela da verdade, sem nenhuma vontade de fazer graça. No presidencialismo brasileiro a figura do presidente da República é muito forte, ocupando um lugar central no imaginário popular. O homem do povo é contaminado visceralmente pela imagem, pela palavra, pelas idéias e pela maneira de ser do chefe do Executivo, que surge revestido, aos olhos da população, de uma autoridade paternal irresistível. Fernando Collor caiu no desagrado geral porque, em vez de cultivar o gênero paternalista, adotou a postura arrogante de quem estava acima do homem da rua. Por isso este não o perdoou. Muito diferente é o caso de Lula. A parcela da população que o apóia se projeta em cheio na sua pessoa. Lula - dizem - tem a cara do povo brasileiro. Então, muitos brasileiros pensam como Lula, sentem como ele, vivem como ele.
O eixo em torno do qual Lula montou sua personalidade pública é a idéia do carisma. Como se sabe, esta é uma palavra grega (kharisma), inicialmente do domínio exclusivo da teologia, significando dom proveniente da graça divina, que é livre e sopra onde quer. Os carismas são dados por Deus em vista do bem comum. "Destarte todos nós temos dons diferentes segundo a graça que nos foi dada, seja a profecia, segundo a proporção da fé, seja o ministério para servir. Se for o dom de ensinar, que ensine, se for o dom de exortar, que exorte. Se o de distribuir esmolas, faça-o com simplicidade. Se for o de presidir, presida com zelo. Se o de exercer misericórdia, que o faça com afabilidade" (São Paulo, Epístola aos Romanos, 12, 8). Posteriormente, a palavra "carisma" secularizou-se na pena dos sociólogos, significando o conjunto de qualidades excepcionais próprias de um líder. E, depois de se secularizar, se banalizou miseravelmente nos circuitos da imprensa e das rodas de botar conversa fora. Hoje em dia, a qualquer mequetrefe se atribui "carisma", aos executivos, aos publicitários e aos burocratas.
Ficou fácil conferir carisma a qualquer um. Basta ter subido na vida, ser simpático e bem falante, pronto, ganha-se carisma. Lula tem carisma? Não se sabe ao certo. O que consta é que a coroa do carisma circunda sua cabeça, não se cogitando se a coroa pode ser de lata. Lula tem carisma e por isso pode falar errado, nunca precisou ler nem estudar, nem mesmo trabalhar, segundo as más línguas. Basta ter carisma, segundo a crença vulgar, e tudo o mais cai do céu, sem muita reza nem muito empenho. O presidente, seus adeptos e publicitários lançaram o mito do carisma de Lula, que se alastrou na sociedade de modo a contaminar muita gente. Nada de se matar de trabalho, de lutar para vencer, de entrar na dura competição da vida profissional, para se impor. Basta ter carisma e o êxito acontece fatalmente.
Pergunto se não foi esta mentalidade que enterrou a seleção brasileira na Copa. A seleção comandada por Parreira foi badalada demais, mimada em excesso pela população, como se fosse um time de super-homens. Do narcisismo à crença no carisma e no destino providencial foi um só passo. O conto do carisma, centralizado na figura do presidente, irradiou-se pelas mais diversas camadas da população, inoculando-se na seleção e atingindo principalmente os atletas mais famosos, que viraram garotos-propaganda, faturando milhões. Um bando de "señoritos satisfechos" acomodados no sucesso, recusando-se a arriscar suas preciosas canelas, a enfrentar o estresse e pôr em risco sua posição. Para quê, se o carisma garante a vitória?
Carisma de verdade tinha Napoleão. Só que o imperador francês, independentemente do carisma, era uma flama de esforço puro ardendo dia e noite sem cessar. Winston Churchill também tinha carisma, como provou ao mobilizar como um só homem a população inglesa na resistência aos nazistas. Pois Churchill não arredava o pé da trincheira, sempre em ação até a exaustão. Para não ir longe, JK foi o presidente brasileiro mais dotado de carisma. Mesmo assim, Juscelino não tinha tempo para dormir, exigindo sempre o máximo de si, dando a todos o exemplo do lidador infatigável. O carisma não exclui o imperativo do trabalho diuturno, da força de caráter, da persistência, do esforço aturado, por vezes acima das próprias forças.
Por acreditar cegamente no próprio carisma, no conto do carisma encarnado por Lula, a seleção achou que não precisava fazer a lição de casa, amassar barro e sacrificar seu conforto material para vencer. Bastaria chutar e se faria gol, como que por milagre. O exemplo vinha de cima. Adeus, empenho para vencer. Adeus ao esforço descomunal exigido por uma competição olímpica, adeus à garra e à raça. E adeus, vitória.
Outros que se matem de treinar, de jogar, e que levem a taça que todos os brasileiros sentem agora como se fosse roubada de suas mãos. A culpa de tudo é do Lula, o mago da ilusão, do ardil e do engano, o mestre dessa fraude militante que tão absurda e despudoradamente chamam hoje de carisma.
(*) escritor



Editado por Giulio Sanmartini   às   7/20/2006 09:29:00 AM      |