Por Ricardo A. Setti em no mínimo Quem fala demais, reza o implacável dito popular, acaba dando bom-dia a cavalo. O presidente Lula não chegou a dirigir, especificamente, cumprimentos a nenhum exemplar da simpática comunidade eqüina, mas sua verborragia descontrolada está em perfeito estado. Só nos últimos dias, produziu a baboseira – "golpista", como corretamente qualificou Elio Gaspari – de sugerir uma esdrúxula "Constituinte" para promover uma reforma política e chegou ao ponto da ofensa preconceituosa a um homem digno, o ex-presidente Itamar Franco, virtualmente chamado de caduco por ter se desencantado com o petismo no poder e cometido a ousadia de apoiar o candidato tucano ao Planalto, o ex-governador paulista Geraldo Alckmin. Foi também a falastrice presidencial que nos permitiu saber, dias atrás – lembram-se? – que ele não sabe direito "quando é candidato e quando é presidente". Na dúvida, Lula vem sendo candidato há pelo menos bons seis meses – críticos mais ácidos consideram que ele jamais desceu do palanque desde a posse –, embora, segundo a lei eleitoral, tal condição só pudesse ser ostentada a partir de 24 de junho, quando a convenção nacional do PT o consagrou oficialmente. São incontáveis discursos eleitoreiros, viagens por toda parte, inaugurações de obras – prudentemente substituídas, após o início oficial do prazo de campanha, 1º de julho, por subterfúgios como "visitas" ou "vistorias", ou a simples presença física de Sua Excelência, sem qualquer rótulo –, lançamentos de pacotes de bondades, contratação de funcionários, aumentos salariais. E por aí vai.
Não é novidade para ninguém, o país inteiro tem assistido a isso. Há um mês e pouco, um editorial da "Folha de S. Paulo", ao contabilizar atos de campanha disfarçados, chegou a registrar a preferência presidencial por "visitas" a realizações inacabadas – em alguns casos, projetos absolutamente crus, com previsão de entrega para depois de 2010, quando se encerra o próximo mandato. Embora volta e meia se queixe dos cerceamentos (frágeis, como sabemos) impostos pela legislação eleitoral – ironicamente, apertos que o PT lutava para ver aprovados quando na oposição –, o presidente vem, na verdade, demonstrando grande desenvoltura como candidato desde muito antes de receber esse carimbo oficial, época em que zombava da inteligência da opinião pública jurando que ainda não se decidira pela recandidatura. E a declaração sobre a dificuldade de distinguir presidente de candidato é parte integrante da excelente desculpa que é sempre possível desfraldar: a de que, afinal de contas, não foi ele quem inventou a reeleição. Muito pelo contrário, Lula e o PT a combateram com ferocidade, quando de sua aprovação, em 1997, no início do terceiro ano do primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. O fato é que os tucanos e o PFL – com a ajuda de uma multidão de políticos que hoje estão na base de apoio do próprio Lula, e com o engajamento ostensivo ou não, mas intenso, dos 27 governadores de então – trouxeram esse Mateus ao mundo político brasileiro, mas nunca se preocuparam em embalá-lo. Aprovou-se a reeleição, e nada de adaptar minimamente a legislação eleitoral a essa profunda mudança, ou de criar regras exclusivas para disciplinar o que pode e não pode fazer um presidente (e um governador, e um prefeito) que continua administrando e, simultaneamente, solicita votos para continuar no cargo por outros quatro anos. Em países como os Estados Unidos, em que a reeleição existiu desde os primórdios da República (empossado em 1789, George Washington, um dos pais da pátria e o primeiro presidente, já seria reeleito e governaria até 1797), a prática de mais de dois séculos juntou-se à legislação para criar regras, e os presidentes desdobram-se com desenvoltura, e sem trampolinagens, no duplo papel. (Por sinal, não havia limite para o número de reeleições nos EUA. Eles vieram após o susto provocado pela morte do presidente Franklin Delano Roosevelt no primeiro ano de seu quarto mandato consecutivo, em plena fase final da II Guerra Mundial de cuja vitória Aliada ele foi um dos artífices. Dois anos depois, em 1947, o Congresso aprovou a 22ª emenda à Constituição, finalmente ratificada em 1951 por mais de dois terços das Assembléias Legislativas estaduais – exigência adicional prevista na própria Carta –, estabelecendo que "nenhuma pessoa" pode ser eleita presidente por mais de duas vezes, consecutivas ou não). Aqui, como ninguém, a começar pelos tucanos, se preocupou com regras, o jeito é adaptar do jeito que der as existentes. É por isso que a Presidência da República tem protagonizado ginásticas incríveis de forma a não tornar o presidente (ou será o candidato?) Lula vulnerável perante a Justiça Eleitoral: ele às vezes viaja de Brasília para alguma cidade travestido de candidato, como ocorreu esta semana em sua ida a Governador Valadares (MG) para um comício. Então evita lançar mão do Airbus presidencial, o "Aerolula" de 52 milhões de dólares, e recorre a aviões menores da Força Aérea Brasileira (FAB), como, no caso, um EMB 145 de 40 lugares, também responsável por levá-lo em seguida a São Paulo para compromissos oficiais. O PT arcou com as despesas, reembolsando os cofres públicos dos custos dos dois trajetos. A partir de São Paulo, porém, e já ostentando sua condição de chefe de Estado, ele pôde embarcar sem problemas no Airbus em sua volta a Brasília. Essas regras ordenadoras do comportamento presidencial na reeleição eram necessárias para este ano. Não se sabe se serão para o próximo pleito, em 2010, uma vez que o Senado acaba de aprovar emenda constitucional acabando com a reeleição, e com total engajamento dos tucanos supostamente arrependidos. Claro que ainda falta a aprovação, complicada, pela Câmara – e pela Câmara-incógnita a ser eleita no próximo dia 1º de outubro. Mas um Lula reeleito não teria grande interesse em manter a reeleição, à qual até hoje diz que se opõe, em tese. E, se Alckmin chegar ao Planalto, por acordo feito quando de sua complicada escolha em março passado, ele se verá compelido a trabalhar para que o instituto que beneficiou FHC seja extinto. Nessas condições – não havendo regras para o atual pleito, e talvez desaparecendo as razões para a existência delas, no próximo –, o correto seria Lula licenciar-se da Presidência até as eleições, terminem elas no primeiro ou no segundo turno. Ah, pode-se argumentar, mas FHC não procedeu assim em 1998. A verdade é que FHC teve mais compostura em sua campanha reeleitoral, mas é claro que deveria, sim, ter acompanhado a atitude ética do falecido governador Mário Covas, colega de partido, que no mesmo ano, candidato a um novo período no governo de São Paulo, afastou-se do cargo durante quase quatro meses para fazer a campanha. (Para ser preciso, lanço mão dos dados fornecidos pelo ex-secretário de Comunicação de Covas, Osvaldo Martins: o governador permaneceu fora de seu gabinete no Palácio dos Bandeirantes, deixando no lugar o então vice Alckmin, de 5 de julho a 31 de outubro daquele ano). Neste ano de 2006, o governador de Santa Catarina, Luiz Henrique (PMDB), ex-"autêntico" dos velhos tempos do partido, ex-companheiro de Covas antes da criação da dissidência tucana, em 1988, deu nesse sentido um passo ainda mais radical – infelizmente ignorado pela grande mídia que tanto desanca os políticos, como se todos fossem da mesma laia: no dia 6 de julho passado, renunciou ao mandato ganho limpamente nas urnas em 2002, e a 179 dias no comando de um Estado importante e rico, passando o posto ao vice, Eduardo Pinho Moreira, "para concorrer em condições de igualdade com os demais candidato", como explicou. Ao falar em pedido de licença de Lula, o signatário sabe que está apenas lançando palavras ao vento e jogando conversa fora, pois se trata de algo que jamais acontecerá. Não custa, porém, cumprir o dever de assinalar que o gesto seria bom para o presidente e para os usos e costumes políticos "deste país".
Editado por Giulio Sanmartini às 8/11/2006 02:21:00 AM |
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