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COLHEITA OBRIGATÍRIA
Por Fabio Grecchi na Tribuna da Imprensa
Quem tiver a oportunidade, deve urgentemente assistir a "Quanto vale ou é por quilo?", filme de Sérgio Bianchi que ajuda muito a entender por que o Brasil se tornou uma terra de vale-tudo. Mostra exatamente o fechamento das duas pontas: a de cima, que se serve dos recursos públicos e das benesses do Estado, e a de baixo, que forçada pelo desamparo recorre ao crime e à violência para sobreviver à desassistência e à empulhação. Em várias situações, não apenas os opostos se tocam, como se entrelaçam, com a parte de cima usando a de baixo para dar cabo dos serviços sujos.
O nome do filme é expressivo: tratava-se de expressão comum no mercado de escravos do Brasil Império. No comércio de gente, o "quanto vale" se destinava aos "espécimes" fortes e novos, aptos para o trabalho pesado. O "é por quilo" geralmente era aplicado àqueles negros ou índios adoecidos ou envelhecidos, mas ainda em condições de serem usados em funções que a casa grande não se permitia fazer - como dar fim ao produto matinal que jazia nas latrinas. Algo que nas nossas relações sociais atuais não se alterou muito, figurando no primeiro caso quem tem carteira de trabalho assinada.
No segundo estão aqueles que infestam as prisões. Sucumbiram ao crime por várias razões, todas causadas pela falta de alguma coisa. De comida, de trabalho, de educação, de saúde. Lá dentro continuam carentes, e como ali a lei do mais forte é elevada à enésima potência, apenas quem está disposto a matar ou a morrer sobrevive. E por questões de sobrevivência se alia ao mais forte, quando começa a se diplomar na marginalidade. Como o sistema prisional brasileiro mantém os detentos na mais total e completa pasmaceira, nada além do natural que se organizem com o intuito de pressionar, de baixo para cima, a sociedade que os expeliu.
O comércio da droga se sofistica, vampirizando os filhos das classes mais altas, e se amplia à base de armamento pesado. A indústria do seqüestro potencializa a perversidade, tudo em nome do lucrativo negócio de trocar entes queridos por boas somas em dinheiro. O roubo de veículos mexe inclusive com agentes oficiais, que ganham no desmanche ou na devolução do carro. Evidentemente que se trata de uma face capitalista pré-Revolução Industrial, da qual poucos querem ficar de fora.
Advogados, políticos, policiais, administradores, contadores - são o lado gente bem de um comércio que pertence aos PCCs ou Comandos Vermelhos. Estes, com menor preparo, ganham em poder e capacidade de aterrorizar, com umas poucas exceções cuja visão vai mais além da favela e aplicam o que rende em bens e propriedades. Os outros, com mais estudo e canudo de doutor debaixo do braço, têm a astúcia para multiplicar seus ganhos com a parceria criminosa. Conexões, contatos, sociedades, responsabilidade social, solidariedade, são alguns dos nomes deste efeito transformador de 100 em milhão.
Nem se diga que tudo isto é cruel ou inesperado. São décadas de aperfeiçoamento calcado no preconceito, na impunidade, no desprezo pela coisa alheia. É o resultado de escarnecer da honra, de gargalhar sobre a decência. São Paulo e Rio apenas colhem os frutos daquilo que plantaram.


Editado por Giulio Sanmartini   às   8/11/2006 02:32:00 AM      |