Mauro Chaves, no Estadão - Tentar passar para nossos filhos e netos a idéia de que democracia ainda é o melhor sistema de organização do poder da sociedade que já foi inventado no mundo, apesar de todas as manipulações, maquinações e falsificações da vontade popular que pode propiciar. E que as alternativas de formação de governo conhecidas até agora, que dispensam o voto universal e secreto, são muito piores, como indica nossa experiência histórica. Então, que se tire da cabeça da juventude, que não conheceu ditadura, a remota ilusão de que algum tipo de autoritarismo poderia frear a degradação ética da vida pública brasileira.
Procurar persuadir os jovens de que nem a compra bem-sucedida - porque não punida - de escroques parlamentares, ou de governadores fisiológicos, nem a cooptação eleitoralmente vitoriosa de miseráveis de carteirinha - que morrem de medo de sair da miséria e perder o cartão de crédito esmoler - são capazes de retirar a legitimidade do processo eleitoral, visto que na democracia o povo tem todos os direitos, inclusive o de ser enganado.
Convencer nossos filhos e netos de que, apesar de ter dado certo na vida política cabocla a prática da enganação, do engodo, da mentira deslavada (que muito repetida vira verdade), do despejo torrencial de números falsos, da violência contra a lógica e a realidade dos fatos, pela massificação das versões, existe também a possibilidade de uma carreira política dar certo sem nada disso. Pois, por incrível que possa parecer, ainda existem pessoas íntegras trabalhando no meio político brasileiro, não submetidas às cansativas manobras das operações escusas para a própria sobrevivência.
É possível que a maior luta a ser empreendida, agora, em favor de nossos jovens diga respeito à recuperação da valorização do esforço do aprendizado. Precisamos reconhecer, antes de mais nada, o tamanho do estrago causado ao País pelo enaltecimento sistemático da esperteza dos ignorantes, do sucesso dos que não precisaram estudar para vencer na vida, nem ler só um pouco para continuar vencendo. Mas não faltarão bons exemplos, do Brasil, do resto do mundo e de várias épocas históricas, de pessoas que tiveram grande êxito na vida - seja econômico, político ou social - apesar de terem estudado e lido muito. É possível até que possamos descobrir, para estímulo de nossos filhos e netos, figuras que se tornaram importantes apesar de serem professores.
Uma esperança é fundamental que passemos aos que precisam ser estimulados a acreditar no futuro do País: a de que é perfeitamente possível que se roube menos, que a corrupção seja reduzida até pela metade. Em lugar dos R$ 3,5 bilhões de corrupção apontados pela FGV, por exemplo, teríamos só R$ 1,75 bilhão (cifra interessante). Não é de todo impossível que, num esforço permanente de mobilização de entidades e ONGs interessadas em 'ética na política' (desde que não subsidiadas por desvios de dinheiro público, bem entendido), se consiga a redução substancial das falcatruas perpetradas contra o Tesouro, o que propiciaria a sobra de recursos para investimentos em infra-estrutura, tão urgentes no País.
É preciso que inculquemos em nossa juventude a idéia de que a educação, o respeito ao próximo e a transparência são coisas profundamente interligadas, bastando para o demonstrar uma atitude aparentemente sem importância, mas que bem ilustra a falta conjunta disso, a saber: o fato de, numa cerimônia pública, uma autoridade jogar disfarçadamente um papel de bombom no chão, achando que ninguém viu.
Talvez uma das tarefas mais difíceis que tenhamos de passar a nossos descendentes seja a revalorização da nossa língua, que tem sofrido um processo de violação sem precedentes, a ponto de o grau da autoridade pública começar a ser cada vez mais medido por sua capacidade de submeter, com altivez, a humilde e indefesa gramática.
Com certeza será necessário propor a nossos jovens uma reflexão, em termos de governo, sobre a difícil diferenciação conceitual entre equipe e quadrilha. Que toda quadrilha seja uma equipe é fácil de eles entenderem. O problema é, à luz da recente experiência histórica, entender como uma equipe de governo pode deixar de ser uma verdadeira quadrilha. Diga-se o mesmo em relação aos bandos condutores dos partidos que estão no poder. Como distinguir a gestão corporativa partidária da governamental, se os butins administrativo-eleitorais percorrem os mesmos fluxos de recursos e, em última instância, se destinam às mesmas finalidades (quando não, ocasionalmente, desviados para terceiros bolsos ou anexados em cuecas?).
Como nunca se estimularam tanto, neste país, as mais diversas formas de preconceito - o regional, o racial, o social e até o religioso -, só nos cabe, agora, estimular nossos filhos e netos a adquirirem um preconceito muito maior, contra todos os preconceituosos.
Se fosse para escolher o critério de avaliação mais desestimulado neste período medonho que atravessamos, com certeza optaríamos pelo mérito - pois o mérito se tornou a coisa mais desmoralizada na sociedade brasileira de hoje. O conhecimento, a competência, a capacidade de raciocínio, a criatividade, a bagagem cultural, a experiência acumulada, tudo isso entrou em estado de puro frangalho, cedendo lugar, enquanto critério de avaliação funcional, à arrogância da ignorância, ao compadrio, à afinidade ideológico-quadrilheira, à visão comum de que os fins justificam os mais torpes meios. Eis por que o trabalho maior que nos obriga perante as próximas gerações é o da recuperação da meritocracia, que se encontra em estado de franca agonia.
Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e produtor cultural.
Editado por Anônimo às 10/28/2006 08:49:00 AM |
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