Editorial do Estadão
Em dado momento de sua entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, transmitida segunda-feira à noite, o presidente Lula tentou ficar com o melhor dos dois mundos, quando instado a falar da participação de altos dirigentes do PT e de figuras de primeira grandeza do seu governo nas malfeitorias que marcaram o mandato que ele espera renovar de hoje a 11 dias. Tomou a iniciativa de citar os ex-titulares do Gabinete Civil e da Fazenda, José Dirceu e Antonio Palocci, para, de um lado, colocá-los nas nuvens (“Poderiam ser ministros de qualquer governo”) e sair em defesa de ambos (“Não posso dizer que cometeram coisas erradas”), e, de outro, para fazer praça de seu próprio rigor (“Eles viraram alvo de especulações e eu não poderia mantê-los. Não existe amigo nessas coisas. Existe comportamento.”).
Antes fosse apenas esse o problema dos escândalos do petismo no poder: presumíveis comportamentos pessoais intoleráveis em qualquer governo e inerradicáveis de qualquer governo, onde quer que seja - a corrupção convencional promovida por indivíduos que entram para a política a fim de se locupletar e se locupletar para continuar na política, num círculo vicioso de negociatas que, interrompido aqui, recomeça ali, com os mesmos, ou outros, protagonistas e procedimentos. Ora, é claro que políticos como José Dirceu e Antonio Palocci não se enquadram nesse figurino. Quaisquer que tenham sido os seus comportamentos no Planalto, ninguém os acusa de terem feito “coisas erradas” para a engorda de seu patrimônio material, como se diria daqueles mandatários ou autoridades que infestam a esfera pública e que não têm currículo, têm prontuário. Porque - e isso o presidente Lula não pode dizer que não sabe - o que torna o PT diferente é a raridade da corrupção personificada, que se elimina erradicando da sigla as proverbiais maçãs podres. A do PT é a corrupção orgânica, uma singular segunda natureza que foi se configurando como um sistema indiferente até à integridade de seus operadores em outras esferas da vida. Surgiu em meados dos anos 1990, quando o partido começou a eleger prefeitos em cidades importantes e, portanto, fecundas para o que se destinavam os ilícitos. Por tudo que dele se apurou, o caso antológico parece ter sido o de Santo André, cujo prefeito Celso Daniel, no mais um homem de bem, admitia a extorsão de empresas prestadoras de serviços ao município desde que o butim fosse para o caixa 2 da agremiação, nunca para bolsos particulares - e por isso acabou morto. A partir da eleição de 2002, o sistema vicejou. Nas barbas de Lula, o PT comprou o apoio do PL por R$ 10 milhões e pagou Duda Mendonça em dólar, no exterior. Depois, à parte derrapadas como o Land Rover do secretário petista Silvio Pereira, construiu-se o valerioduto não para irrigar as finanças dos companheiros, mas para um fim estratégico em duas etapas. A primeira consistia em dar ao Planalto maioria na votação de matérias de seu especial interesse na Câmara, poupando-o da necessidade de compartilhar diretrizes e decisões - atos de governo, em suma - com partidos de direita. Mais de uma vez o ex-deputado petebista Roberto Jefferson comparou essa opção preferencial pela paga pura e simples como instrumento de dominação política a favores de outra modalidade que o vil metal também compra. A segunda etapa, naturalmente, era a perpetuação do PT no poder, que o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, identificou como a razão de ser da “sofisticada organização criminosa” responsável pelo mensalão. Com a boca entortada pelo uso do cachimbo, nada mais natural agora do que o envolvimento de graduados membros do comitê da campanha da reeleição na compra do dossiê antitucano com dinheiro que o presidente petista da CPI dos sanguessugas, deputado Antonio Carlos Biscaia, diz não haver “a menor dúvida” de ter “origem criminosa”. Ainda no Roda Viva, Lula se gabou de ter despachado da chefia da sua campanha o então presidente do PT, Ricardo Berzoini, porque não descobriu quem fez a “sandice inominável” de se associar à mafiosa família Vedoin para tentar incriminar o então candidato José Serra. Chame a torpeza como queira, Lula não pode fingir que se trata de uma anomalia, um acidente de percurso. É a mais nova emanação do “PT pragmático” de que fala o deputado petista não reeleito Paulo Delgado - e só é sandice porque não deu certo.
Editado por Adriana às 10/18/2006 10:40:00 AM |
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