Editorial em O Estado de São Paulo No sistema de reeleição de detentores de mandatos executivos com direito de permanecerem nos cargos durante a campanha, de fato ocorrem situações em que não é visível a olho nu a distinção entre atos de governo e atos de candidatura. Nesses casos controversos por definição e dificilmente suscetíveis de serem enquadrados, mesmo nas mais rigorosas regras do jogo, apenas o compromisso pessoal do prefeito, governador ou presidente com a ética poderá servir de barreira ao aproveitamento eleitoral do cargo: quando em dúvida, o político genuinamente preocupado em manter separada a sua condição de agente público daquela de participante de competição pelo voto agirá como se não pudesse fazer o que não está claro que não possa. Claro que se trata de um ideal a ser alcançado, e o realismo aconselha que a opinião pública se dê por satisfeita se o governante-candidato se comportar assim na metade das vezes. Nesta eleição, porém, o presidente da República, que deveria ser, por evidentes motivos, o primeiro a dar o exemplo de conduta eleitoral minimamente aceitável, é o primeiro a debochar até da aparência de integridade. Não é que Lula decida sempre a favor de seus interesses nas tais situações em que são imprecisas as fronteiras entre as atividades do chefe de Estado e as da campanha política - o que já seria uma lástima tendo em vista a sua proclamada posição contrária ao instituto da reeleição, porque daria aos já eleitos vantagens exclusivas na disputa.
O presidente vai muito além disso, confirmando os piores prognósticos sobre a falta de escrúpulos com que seria capaz de reduzir a Presidência a comitê eleitoral. Até quando é patente que certas práticas não podem ser rotuladas, em hipótese alguma, como eventos de governo, ele não hesita em se entregar a elas, pouco se lhe dando que isso configure clamorosa apropriação, para fins eleitorais, dos recursos de poder próprios da função presidencial. No sábado passado, para citar o exemplo mais recente, Lula fez comício na Cidade de Deus, na zona oeste do Rio, celebrizada pelo filme de mesmo nome. Em dado momento, crianças beneficiárias de programas federais subiram ao palanque, contaram suas histórias - e pediram votos para a reeleição. Pelas primeiras informações, as crianças - do Rio, São Paulo e Belo Horizonte - teriam sido levadas a participar da manifestação pela Central Única das Favelas (Cufa). Mas um dos coordenadores da entidade, Celso Athayde, logo tratou de colocar as coisas nos devidos lugares. "Não foi a Cufa quem as trouxe, mas o secretário nacional de Juventude do governo, Beto Cury", revelou ao repórter Marcelo Auler, deste jornal. "Nós só garantimos o espaço, como iremos garantir aos demais candidatos que aceitarem o nosso convite." Athayde lembrou que a Cufa é apartidária e informou que receberá no próximo sábado, no mesmo local, o tucano Geraldo Alckmin. A Secretaria Nacional de Juventude está vinculada à Secretaria-Geral da Presidência, cujo titular é o ministro Luiz Dulci. Não há por que duvidar de sua palavra. Mas, apenas para efeito de raciocínio, supondo verdadeira a versão oficial de que a iniciativa tenha partido, não do Planalto, mas da "equipe de mobilização" da campanha de Lula, ou seja, do PT, ainda assim Lula transgrediu a lei. As crianças colocadas no papel de cabos eleitorais do presidente - uma indignidade que afronta o Estatuto da Criança e do Adolescente - foram beneficiadas por programas de promoção social, como Segundo Tempo, ProJovem e Pró-Índio, movidos a dinheiro público. Ou seja, a Cidade de Deus foi palco para um espetáculo em que recursos oficiais tiveram uma nova finalidade - a de ajudar a reeleição de Lula. A coligação oposicionista PSDB-PFL anunciou que entrará com ação a respeito na Justiça Eleitoral. Dê no que der a iniciativa, ela não se compara à brutal reação do presidente do PT e coordenador da campanha de Lula, Ricardo Berzoini, às criticas dos adversários. Ele não se limitou a rejeitar a acusação de que a cena infanto-eleitoral foi um caso notório de uso da máquina. "Isso é fascismo", disparou. "Quem pensa dessa maneira só pode ser um fascista." Falso. Quem pensa dessa maneira rejeita a simbiose entre chefe de governo, partido e Estado - um dos traços dos regimes fascistas, imitados pelo lulismo. De todo modo, a agressão indica que, pela reeleição, Lula e os seus estão prontos para abater a golpes de borduna o que aparecer no caminho.
Editado por Giulio Sanmartini às 9/05/2006 08:42:00 AM |
|