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CRENDICES E FALÁCIAS
por Xico Graziano em O Globo
Agosto, no interior paulista, significava mês de cachorro louco. Trata-se, evidentemente, de uma crendice. Para espantar os cães raivosos, as crianças seguiam para a escola rural, a pé, apavoradas, vestindo seus uniformes ao avesso. Coisa de antigamente.
São comuns, na roça, histórias fantasmagóricas. Saci-pererê, boitatá, mula-sem-cabeça... Nas práticas agrícolas, época de pouca tecnologia, a Lua definia períodos de plantio e colheita. Cortar bambu, somente se permitia na fase minguante, para não carunchar.
A maioria das crenças rurais acabou distante, perdida no trajeto da civilização brasileira. Curioso é perceber que, nessa transição do mundo mágico para a racionalidade, certas crendices rurais permaneceram vivas, como se verdades científicas fossem. Um caso exemplar afeta o eucalipto.
Por mais que a ciência moderna comprove que a árvore é generosa, sua fama de má continua assombrando por aí. Dizem que espanta chuva, seca o solo, que nada nasce ao seu redor, nem vinga na terra com ela outrora ocupada. Nada disso é verdade, mas continua a conversa fiada.
É bem verdade, óbvio, que uma plantação de eucaliptos exige muita água para crescer. Os estudos florestais, todavia, comprovam que o consumo de água pela árvore não difere muito do consumo de outras espécies florestais. A diferença é que ele cresce rápido.
A inquietude remanescente sobre as florestas plantadas com eucalipto se explica por uma razão não científica. E nesse ardil mora o perigo. Afinal, as crendices populares são ingênuas, mas os mitos podem ser utilizados no jogo político da sociedade. Quando ocorre essa manipulação, se transformam em falácias, servindo ao proselitismo político e, no extremo, à guerra ideológica. Foi o que ocorreu com o pobre do eucalipto. Um ecologismo da pior espécie, disfarçado de social, tacha as plantações florestais de “desertos verdes”. Um absurdo agronômico.
Falácia maior, entretanto, ataca hoje a economia e a sociologia rural qual doença contagiosa. Trata-se da alegada oposição entre a agricultura familiar e os agronegócios. O embate ideológico gerou um falso antagonismo, teórico e prático, palco da disputa pelo poder entre dois ministérios da República. É inacreditável.
Argumenta-se que os produtores familiares, pequenos, geram empregos e protegem o mercado interno; os empresários rurais, por sua vez, grandes, são anti-sociais e visam apenas aos dólares da exportação. A falácia imputa virtude aos pequenos e vício aos grandes. Familiares são do bem, patronais, do mal.
A injustificável distinção entre familiar e agronegócio significa uma verdadeira heresia teórica, sem amparo na realidade agrária. Nos EUA, a maioria dos agricultores é familiar e opera em larga escala, contando com a ajuda da tecnologia. O padrão americano se reproduz atualmente na fronteira agrícola de Mato Grosso. A gestão é familiar, porém altamente empresarial.
No Brasil, graças à ideologia barata, o conceito de familiar passou a ser sinônimo de pequeno agricultor. Mais ainda, distante do mercado e isolado das cadeias produtivas. Pior, pobre e indefeso. Virou a coqueluche da esquerda boboca. Uma verdadeira tragédia do pensamento.
Ora, familiar tem a ver com gestão, não com tamanho. E agronegócio exige vinculação ao mercado. Somente estão fora do agronegócio os agricultores de subsistência, como é grande parte dos assentados de reforma agrária. Fazê-los progredir, integrando-os às cadeias produtivas, deve ser o miolo da política pública.
Milhares de pequenos agricultores, organizados em cooperativas, produzem soja e café para exportação. Todos são familiares e, simultaneamente, expoentes do agronegócio.
Dizem que manga comida com leite faz mal. Não procede. Espalhada pelo patrão, a mentira procurava impedir o consumo de leite pelos escravos. Segregar o agricultor familiar, à semelhança da crendice do leite, significa criar uma distinção enganosa. Atrapalha, não ajuda, a enfrentar os dilemas da economia agrária.


Editado por Giulio Sanmartini   às   8/01/2006 02:06:00 AM      |