Editorial em O Estado de São Paulo O combate à corrupção política no Brasil não raro equivale a empurrar um rochedo morro acima, tantas e tão diversas as resistências a cada penoso passo da jornada. O primeiro desafio é descobrir e caracterizar, caso a caso, as diversas modalidades do crime continuado contra o erário. O segundo, reconstituir, também em cada caso, as redes criminais que se organizam, com conhecimento de causa, para explorar os atalhos legais e administrativos que facilitam a violação dos cofres públicos. O terceiro, identificar os assaltantes e seus cúmplices na vasta burocracia estatal. Por fim, o mais difícil, conseguir que os culpados sejam punidos, nas esferas política e judicial.
Nesse sentido, a crônica do desbaratamento do esquema dos sanguessugas é especialmente instrutiva. De um lado, por evidenciar que as instituições de defesa do bem comum não estão fadadas a acumular uma derrota depois da outra diante das máfias habituadas a agir com desenvoltura nos Poderes da República e nos três níveis da Federação. Quando as peças do sistema de proteção se encaixam, como aconteceu nesse episódio, o resultado mostra que, ao contrário da percepção geral, o Estado não está à mercê da bandidagem de colarinho-branco. Alertados pela Controladoria-Geral da União, policiais federais, procuradores e juízes, movendo-se em sintonia, realizaram um trabalho digno de aplauso. Graças a isso, e de posse da robusta documentação obtida pelos agentes do Executivo e do Judiciário que se ocuparam do problema, a CPI dos Sanguessugas conseguiu em tempo recorde incriminar 69 deputados e 3 senadores, dos 90 nomes sob suspeita, como participantes e beneficiários da fraude estimada em R$ 110 milhões, orquestrada principalmente por um negociante mato-grossense. Por sua vez, a pedido da Procuradoria-Geral da República, o STF abriu inquérito contra 84 políticos - praticamente os mesmos do rol original. O melhor dessa CPI foi a decisão sem precedentes de não querer reinventar a roda, abstendo-se de refazer o serviço da Polícia Federal, da Procuradoria e da Justiça Federal de Mato Grosso. Agora, porém, emerge a outra razão que torna o caso excepcionalmente ilustrativo. Trata-se dos estratagemas capazes de safar os acusados do castigo por suas vilanias. Na semana passada, o presidente do Conselho de Ética do Senado, João Alberto Souza, do PMDB, ensaiou livrar sumariamente de processo a trinca indecorosa - Ney Suassuna, também do PMDB, Serys Slhessarenko, do PT, e Magno Malta, do PL. A grita, que ecoa mais forte em anos eleitorais, o obrigou a recuar em 24 horas. Mas o alento não duraria muito. Na terça-feira, mais sutil e com mais poderes, o presidente do Senado, Renan Calheiros, outro peemedebista, deu o seu golpe de mão. Em vez de representar contra a trinca junto ao Conselho, o que permitiria o início a tempo e hora dos procedimentos para a eventual cassação dos três, ele apenas os denunciou. Com isso, o órgão terá de partir da estaca zero, abrindo investigações já efetuadas, cujas conclusões a CPI encampou. E os investigados terão por baixo um mês a mais para renunciar, se lhes convier, a fim de escapar da eventual suspensão dos direitos políticos que acompanha a perda dos mandatos. O truque deixa de ser possível assim que o processo por quebra de decoro é instaurado. Pelo mesmo motivo, se especulava que até uma dezena dos 69 deputados apelaria para a esperteza antes da abertura de ações similares no Conselho de Ética da Câmara, anteontem. Afinal, foram apenas duas as renúncias - mas poucos se surpreenderam. Ficou claro de imediato que os demais 67, fiando-se no precedente dos mensaleiros, contam com a Pizzaria Plenário, que absolveu 9 dos 11 parlamentares que o Conselho queria ver cassados. O que aciona os fornos do estabelecimento, como se sabe, é o voto secreto - para o eleitor não saber quais deputados têm caráter e quais têm mãos sujas. Daí o movimento iniciado por cerca de 50 congressistas de diferentes partidos e posições para que seja apreciada com urgência a emenda constitucional proposta pelo deputado petebista e ex-governador Luiz Antonio Fleury Filho visando a tornar aberto o voto em pedidos de cassação. Essa causa só terá algum futuro se a opinião pública aproveitar a temporada e fizer as pressões cabíveis, com muito barulho. Se não, a impunidade prevalecerá e, de novo, uma CPI morrerá na praia.
Editado por Giulio Sanmartini às 8/24/2006 09:06:00 AM |
|