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ENTRE OS GRITOS DO CARCARÁ E A DESFAÇATEZ DA RAÇA HUMANA
Ezio Flavio Bazzo (*) - Enviado por Leo Medeiros

Sertão sanfranciscano! Antigo reino da piracema, das carnaúbas e dos carrascais! Sertão paraíso! Sertão anfíbio! Sertão hospício e inferno! Sertão bestiário e caldeirão de bruxaria! Sertão cloaca de significantes! Sertão sintoma e espelho de nossa secreta desfaçatez! Uma vintena de dias serpenteando com o rio da Serra da Canastra até o Oceano Atlântico, junção de águas por onde Maurício de Nassau entrava para subtrair gado dos currais e a milícia de batina para perverter almas. A trivialidade dos currais, jegues, piranhas, bodes e bardos errantes pelas barrancas desse longo escoadouro. Pena que se acabou a excitante e folclórica navegação em gaiolas. Os esqueletos dos velhos barcos estão ancorados e apodrecidos às margens para quem quiser ver. Os antigos donos das companhias de navegação, os patrões dos remeiros e os sórdidos e sucessivos governos não abandonaram apenas as hidrovias, desativaram também a Ferrovia Central do Brasil e deixaram a buraqueira tomar conta das estradas.
Hoje, para percorrer esses quase três mil quilômetros é necessário estar com as vísceras em muito boa forma. Ainda bem que cada solavanco arranca dos viajantes uma maldição atrás da outra e um rosário de questionamentos seculares: Onde estão os paladinos revolucionários? Os jacobinos? As Ligas Camponesas? Os ex-hippies do Green-Peace? Onde estão os agitadores profissionais? Os tais homens de bem que dedicariam suas vidas aos pobres e aos desgraçados do planeta? Onde estão as ONGS? Onde estão os jagunços, os cangaceiros, os índios, os donos da gadaria, os gerentes da Teologia da Libertação? O Padre Cícero? Os Conselheiros? Os Riobaldos, os Robin Hood e os Beneditinos, com sua sede mortal de ficções? Cadê os figurões de engenho? O Bom Jesus da Lapa? A Associação das Mulheres Enfezadas do Sertão? Onde estão as máfias que se sucederam durante décadas nos Ministérios, nas Prefeituras, nos Governos? Os tataranetos dos bacharéis portugueses, os promotores e os juízes? Onde estão os misericordiosos e altruístas empresários? Os banqueiros? Os advocatus diabolis? A burguesia obesa e triunfante com sua anêmica demagogia de salvação? Cadê a direita frívola, monástica, cheia de esquemas e concêntrica, com seus grupos de extermínio? Aqui entre nós, leitor: pode-se esperar alguma coisa de um povo que ainda tem como principais fascinações: a farda, a batina e a tribuna?”.
Onde estão as sacerdotisas, as “quengas dos remeiros, as mulheres de beira-de-rio e todas as outras criaturas de lama?” Onde estão os trapaceiros de todos os partidos e de todas as Constituintes? Os economistas? A juventude anarquista? A imprensa cortesã? Os punks incendiários e os vaidosos literatos regionalistas? Onde estão os pesquisadores de “tempo integral?” Os “consultores” e outros estelionatários do gênero? Onde estão os homens que têm bagos neste país? Por todos os lados um festival de fantoches ambíguos, de ex-presidentes, ex-gigolôs, ex-coronéis, ex-senadores, ex-jagunços, ex-arcebispos, ex-amantes, ex-sindicalistas, ex-procuradores, ex-governadores com seus respectivos capachos. Todos novos ricos sem história, travestidos de políticos, parasitados pela voracidade de suas velhas e de sua prole, engajados em conciliações miseráveis, em arranjos, em cumplicidades, em trapaças, em omissões e em sigilos repugnantes. Traficantes de hábeas corpus, meretrizes genuflexas imedicáveis, camelôs de frases prontas, párias da execração, homens que, com seu sêmen, com sua merda e com sua lábia só envenenaram este país sem nunca assumirem uma postura grandiosa diante de nada, com exceção, claro, do crime. Nem sequer diante dos milhares e milhares de flagelados em fila indiana que, durante as décadas e os séculos da transição entre a tribo e o paradoxo, apodreciam em suas tocas, na solidão da caatinga e ao longo das estradas, isso, quando não se lançavam num êxodo desesperado e suicida para a servidão dissimulada lá nos seringais amazônicos, lá nas construções do sul ou mesmo lá na solidão das fazendas paraguaias.
O ônibus empoeirado vai margeando o rio e varando o sertão ora sob um sol filho-da-puta, ora sob um telão sideral indescritível, levando em seu interior uma legião de seres sem gravidade que têm, pelo menos, a audácia de não querer ser nada. A cada solavanco, uma nova blasfêmia, e uma nova pergunta. Onde estariam os crápulas representantes desse povo? Resposta: Mortos! Todos mortos vivos. Soterrados por suas vidas de bosta. Cambada de dândis incompetentes e narcisistas, ocupados com suas nádegas, com suas roupinhas da moda, com suas aplicações financeiras, com suas mansões e com seus cremes. Filhos-de-éguas – esbravejava um sertanejo. Potencialmente criminosos, medíocres, mercantilistas, analfabetos, herdeiros diretos tanto dos párias europeus que por aqui se fixaram, como dos donos dos currais, das usinas, dos canaviais, dos garimpos, dos chefões da carnaúba, do cacau e de tudo. Todos enlouquecidos pelo enriquecimento desleal, por debaixo dos panos, nos intervalos dos jantares, e pela libido, que foi se convertendo aos poucos em peçonha! Porcos ébrios! Ébrios de um falacioso civismo, de uma enganosa religiosidade, de uma tola cidadania e de mil outras bizarrices, como se intuíssem que tanto nossa dor como nosso destino carecem de lógica e de motivo.
E é enfurecedor saber que apesar de todo o teatro recente ao redor da ética, é a mesma súcia e seus descendentes que continua governando, tendo acesso aos segredos de Estado, aos cofres e às senhas do Tesouro Nacional. Sim, é um exercício de desfacinação confirmar que o povo, a plebe, o populacho, as manadas estéreis de eleitores de todas as classes, em sua languidez, só amam histérica e perdidamente ao futebol e não estão nem aí. E mais, infectadas de credulidade mística, por um lado, e de niilismo antropológico por outro, para elas, que os parlamentares jurem sobre a Bíblia ou peidem –parafraseando a Démétrius-, é tudo a mesma merda. Pobres trópicos!
(*) Ezio Flavio Bazzo - Doutor em Psicologia Clínica e escritor. Autor de Vagabundo na China, Dymphne a santa protetora dos loucos; Ecce Bestia, entre outros


Editado por Adriana   às   7/03/2006 09:24:00 PM      |