Por Laurence Bittencourt Leite
Foi o poeta Virgílio que escreveu a célebre frase: “se não posso mover os céus, ao menos posso agitar o inferno”. Quem nunca leu a obra prima de Eugene O´Neill “Longa jornada noite adentro”, Long Day’s Journey Into Night, jamais irá entender a frase do poeta latino, e certamente não pode ser considerado um bom leitor. A peça publicada postumamente trata da relação infernal da família Tyrone, onde o teatrólogo americano altera os nomes, mas se trata na verdade de uma peça autobiográfica. O pai na peça, James, a mãe, Mary e os filhos James Jr. e Edmund (o alter-ego de Eugene), vivem 24 horas de um dia na casa de praia da família, onde é registrado o tormento de toda uma vida familiar em comum. Como disse alguém não muito letrado, a peça pode ser considerada uma análise de grupo. Mas O´Neill não tinha o menor interesse em psicanálise. O que ele queria e consegue fazer muito bem é mostrar a nú, o drama existencial que o acompanhou por toda a vida e a sua família, retratado em uma peça já no final da carreira, o que nos faz lembrar de outro grande escritor, Tolstoi, que escreveu na abertura do livro “Anna Karenina”, a sua frase terrível e genial de que “todas as famílias felizes se parecem; e cada família infeliz é infeliz a sua maneira”. A família Tyrone reproduz na integra esse dístico. Eugene O´Neill bebia muito. O pai (real) havia sido um ator de teatro frustrado quando jovem. Isso tudo aparece em “Longa jornada...”. Na verdade O´Neill aparece também no filme “Reds” interpretado pelo ator Jack Nicholson, sempre bebendo, perambulando pelo bairro boêmio de Greenwich Village, sendo mostrado como tendo um caso com a mulher de John Reed o autor de “10 dias que abalaram o mundo”. O´Neill nunca teve o menor interesse com política. Ele se considerava anarquista, mas como sempre os comunistas burramente e mais uma vez movido pelo desejo de censura acusaram o teatrólogo americano de só pensar individualmente, nos dilemas pessoais, emocionais se quiserem, sem se preocupar com o coletivo, com as massas, com diferenças de classes, etc. Como se os dilemas e tormentos pessoais não fossem forjados no ambiente plural de cada um, ou seja, com os outros. Essa mesma acusação já tinha sido dirigida ao cineasta Ingmar Bergman. A falta de simancol dessa gente não pode ser medida. Mas a peça “Longa jornada...” não é para adolescentes. É para gente de meia idade, talvez, e madura. A forma como o escritor se colocou na obra o levou a pedir para sua última esposa, Carlotta para só publicá-la após sua morte, o que realmente foi feito. Mas já na dedicatória que entregou a mulher O´Neill abre o coração: “trata-se de uma peça de velhas mágoas, escrita em lágrimas e sangue. É uma homenagem ao seu amor e ternura, que me tornaram capaz de enfrentar meus mortos e escrever este peça com profunda piedade e compreensão e perdão pelos quatros obsessivos Tyrones”. Mais não precisa dizer. A peça se desenrola numa noite de verão de 1912, e o que vemos são quatro obsessivos, três alcoólatras e uma viciada em morfina, se acusando e auto acusando, e ao mesmo tempo tentando manter o que resta de carinho. Apesar dos intensos laços amorosos, o que jorra é a solidão do individuo (coisa que os comunistas querem esconder ou atribuir, Jesus, como culpa ao capitalismo) inescapável em família. Há frases na peça memoráveis como a extraída do poema de Baudelaire e pronunciada por Edmund o filho mais novo (que como O´Neill sofre de tuberculose), “embriague-se, somente isto importa!”. Ou na frase de Mary corroída de morfina, “somente o passado é real, um passado em que se foi feliz”, ou quando ela diz ao marido “como você pode crer em mim, se eu próprio não creio”. Em alguns momentos a peça do escritor americano lembra muito “Entre quatro paredes” de Sartre, em que o inferno parece os outros, e em outros nós mesmos, o que vem provar que não se trata de um drama de uma “família burguesa” e sim de todo ser humano com o mínimo de consciência de si mesmo e dos que o cercam. A peça de O´Neill transcende épocas e ideologias. Depois de vários dramas menores, o católico O´Neill abriu seu coração por inteiro e nos deu um drama incomparável e inesquecível. Vale a pena ler e mais ainda encená-lo. laurencebleite@zipmail.com.br
Editado por Giulio Sanmartini às 2/06/2007 01:10:00 AM |
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