Por Pedro do Coutto na Tribuna da Imprensa
O diretor de Marketing do Itaú, Fernando Chacon, disse ao Caderno de Economia de "O Globo", edição de 8 de novembro, que um levantamento realizado pelo banco revela que o mercado brasileiro de cartões de crédito este ano bate o recorde histórico desde que, há cerca de 40 anos, foram colocados em prática no País. O movimento em 2006 vai atingir, em dezembro, nada menos que 159 bilhões de reais, vinte e cinco por cento a mais do que no ano passado. Um avanço enorme, sobretudo se considerarmos que a inflação calculada pelo IBGE para os últimos doze meses oscila entre 4 a 5 por cento. Houve, portanto, uma progressão real. Este será um fenômeno positivo? Não creio. A meu ver constitui a prova de que a moeda escritural está substituindo, no comércio, o dinheiro circulante. Formou-se no Brasil um sistema de saque para o futuro, ou de rolagem das dívidas individuais que, cedo ou tarde, vai conduzir a uma crise social.
Da mesma maneira que o governo rola a dívida interna de 1 trilhão e 61 reais pagando juros de 13,75 por cento ao ano (pode ser que este mês desça meio ponto), a sociedade vai comprando à base do cartão, acumulando dívidas e pagando sobre elas juros, não na escala dos 13 por cento ao ano, mas sim de 12 por cento ao mês. Um verdadeiro descalabro. Cria-se assim uma situação semelhante à definida no belíssimo verso do grande e eterno Vinicius de Moraes quando, na canção em parceria com Tom Jobim, definiu a felicidade: "É como a pluma que a brisa vai levando pelo ar; voa tão leve, mas tem a vida breve, precisa de vento sem parar." É exatamente o que está acontecendo com os milhões de consumidores brasileiros: precisam de vento (crédito) sem parar. Se o vento parar, a queda será de enormes proporções, refletindo conseqüências para todos os lados. Circulam no País - acentua Fernando Chacon - 76,6 milhões de cartões de crédito. Isso deve conduzir à certeza de que de 25 a 30 milhões de pessoas possuem o esquema que leva à moeda de plástico, já que é comum uma pessoa possuir mais de um cartão. Uma pesquisa importante será a que identificar o percentual de inadimplência, abrangendo reparcelamentos e cancelamentos. Nos estabelecimentos comerciais existem listas de bloqueios. São enormes. O faturamento através dos cartões supera as compras realizadas por meio de cheques. E olha que, anualmente, são emitidos no Brasil em torno de 2 bilhões e 400 milhões de cheques. O valor apontado para os cartões pelo diretor de Marketing do Itaú é altíssimo. Basta compará-lo com a massa salarial paga no País. Com base no estudo do professor Cláudio Contador, da UFRJ, os salários pesam um terço do Produto Interno Bruto. Logo, significam aproximadamente 600 bilhões de reais/ano, uma vez que o PIB é de 1 trilhão e 800 bilhões de reais. Assim, o movimento com os cartões de crédito representa um quarto de todos os salários pagos no Brasil. É muita coisa. Há pouco falei na necessidade de ser feita uma pesquisa sobre o mercado de cartões incluindo a inadimplência, sempre alta. Mas tal levantamento só estará completo se aferir o peso dos juros cobrados pelos bancos em cima das compras efetuadas. Pois está sendo prática comum muitas pessoas, inclusive das classes de menor renda, utilizar os cartões para pagar suas compras. Os juros mensais são de 12 por cento, pelo menos, como todos sabem. Doze por cento ao mês. Ou algo superior a 200 por cento a cada doze. De quarenta a cinqüenta vezes mais do que a taxa inflacionária calculada pelo IBGE. Onde está o Banco Central que assiste a tudo isso sem dar uma palavra? Onde está o governo Lula que não faz qualquer determinação para conter um mercado tão alucinante? Alucinante e predatório. Predatório porque mantém a população na pobreza, na dependência do sistema financeiro, a ele entregando quase todos os resultados de seu trabalho. O Banco Central deveria inspirar-se no mercado financeiro dos Estados Unidos para conter a velocidade com que a rede bancária, direta e indiretamente, apropria-se dos ganhos do trabalho. Mas por que - pergunto eu - faria isso, se o BC, na realidade, é o representante dos banqueiros nacionais e internacionais?
Atualmente, verifica-se uma forte presença dos cartões de crédito até nos supermercados. Pessoas humildes, em grande quantidade, fazem suas compras por este caminho. E vão em frente. Até quando não se sabe. Mas isso tampouco interessa aos bancos. Para cada inadimplente cancelado, surgem muitos outros candidatos ao crédito giratório. Os tecnocratas sabem muito bem que, por esse caminho, não há saída para os trabalhadores e funcionários públicos, sobretudo porque seus salários perdem para a inflação. E se perdem para uma inflação na escala anual de 5 por cento, que dirá para um esquema - um verdadeiro redemoinho - de 12 por cento ao mês? Mas este lado não é o único da questão. Existem dois outros. Os cartões alimentam o mercado de consumo, em primeiro lugar. Em segundo, o sistema que eles embutem é o mais poderoso instrumento de concentração de renda em ação no País. Ela vai se concentrando progressivamente. Desde que haja - como Vinicius deixou escrito para sempre - vento sem parar. A pergunta é se o vento, um dia, pára ou não. Vamos ver.
Editado por Giulio Sanmartini às 11/15/2006 01:37:00 AM |
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