Por Gaudêncio Torquato em O Estado de São Paulo
O Brasil tem uma democracia pior que a da África do Sul e a de Botswana. É a conclusão de um estudo feito pela revista The Economist, que coloca o País na 42ª posição entre 167 nações. Por que somos menos democráticos do que um país de 40 milhões de pessoas onde mais de um quinto (21,5%) da população entre 15 a 49 anos tem aids, ou do que outro que convive com a expectativa de vida mais baixa do planeta, 35 anos? Do último improviso de Lula, em Mato Grosso, se sinaliza a resposta: 'O governo é como se fosse um pote de água benta, cabe tudo ali.' Entende-se, pela imagem extravagante, que a água abençoada é a mais apropriada para molhar dedos, sejam eles sujos ou limpos, de cristãos e não-cristãos que se benzem nos templos. Desse modo, a democracia brasileira seria o hábitat de espécimes que, de tão variados, só mesmo aqui encontram condições de sobrevivência.
Basta contemplar o arranjo federativo, que abriga figuras como presidencialismo imperial, bicameralismo, sistemas proporcional e majoritário e multipartidarismo. A aquarela é arrematada com nuances de uma cultura plena de ismos - caciquismo, fisiologismo, familismo, filhotes do patrimonialismo. Já os pregos que afixam o quadro na parede foram produzidos no forno de uma Constituição que, de tão detalhista e remendada, se transformou em livro ilegível. Por isso, a nota 7,38 conferida pela revista britânica pode ser considerada até alta, se os parâmetros avaliados não se limitassem a estes: pluralismo eleitoral, 9,48; eficiência governamental, 7,5; participação política, 4,44; cultura política, 5,63; e liberdades civis, 9,41. Se o quesito corrupção fosse avaliado, a nota cairia mais ainda. O Brasil é o país mais corrupto da América Latina. Numa lista de 146 países, ocupamos o 29º lugar, segundo a Transparência Internacional. Nos 5.560 municípios brasileiros, a corrupção grassa em 85%, constatação feita pelo controlador-geral da União, Jorge Hage. A boa avaliação do País no fator pluralismo eleitoral não expressa distorções geradas pela fragmentação partidária. O sistema partidário nasce e se fortalece nos espaços locais. Ora, a legislação deixou de lado o princípio da eqüidade da representação para compensar os desequilíbrios regionais pela via parlamentar, agravando uns partidos e beneficiando outros. Assim, o sistema torna-se injusto. A indisciplina partidária, por sua vez, leva o presidente a sair a campo, tentando cooptar alianças para formar uma coalizão. Esse é o atual exercício de Lula. A composição do governo implica, necessariamente, inserção de partidos na administração, gerando ferrenha disputa entre eles. A conseqüência se faz sentir na permanente instabilidade das relações entre os Poderes Executivo e Legislativo. Basta que parcela de parlamentares se rebele contra o conjunto ministerial para o governo balançar no eixo. A base da maioria, vetor de democracias consolidadas, é ameaçada. Para aumentar os buracos o poder presidencial patrocina uma democracia delegativa, dentro da qual o chefe do Executivo usa e abusa de medidas excepcionais para legislar, no caso, as medidas provisórias. Com elas o Brasil cria um monstrengo, o parlamentarismo às avessas. O Executivo opera a legislação que ele mesmo cria. Mede-se, ainda, a força do Executivo pelo viés intervencionista implícito no caráter autorizativo do orçamento da União. Quem dá as regras é o Ministério da Fazenda, obrigando parlamentares a fazer fila para defender verbas nos balcões dos interesses da administração. Um orçamento impositivo, sem possibilidade de barganhas, deixaria as regras mais estáveis. O item eficiência governamental, que recebeu nota média, é um forte entrave à nossa democracia. Multiplicam-se os exemplos. Ora é o presidente da República cobrando mais criatividade de ministros. Ora reconhece que não sabe como destravar a economia e promover o crescimento do País de 5% em 2007. Ou, ainda, é a voz presidencial sem eco. Atrasos de vôos transtornam a vida de milhares de pessoas e o governo não sabe o que fazer para acabar a crise na aviação. O prazo de 48 horas para aliviar a calamidade que assola o Incor, em São Paulo, agoniza na UTI das falas presidenciais quase mortas. Quanto à participação política, que ganhou a menor nota da Economist Intelligence Unit, basta dizer que por estas plagas não se vota em programas, mas em pessoas, que se consideram donas do mandato, portanto, com direito a negociá-lo. O eleitorado, por sua vez, vota em imagens vagas de beltranos. Fora do ambiente eleitoral, a participação é um zero absoluto. A cultura política só podia ser mal avaliada, eis que remanescem traços da herança deixada por dom João III, entre 1534 e 1536, quando criou 14 capitanias hereditárias e as distribuiu a 12 donatários. A confusão entre público e privado vem daí. Quanto às liberdades civis, a excepcional nota conquistada mais parece generosa aprovação à índole de um povo cordial do que reconhecimento de direitos, implícito no quesito. Apesar de avanços no capítulo da discriminação, há muita desigualdade entre classes e grupos sociais. No ranking sobre disparidade de gêneros, por exemplo, recém-divulgado pelo Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, o Brasil aparece na 67ª posição entre 115 países. No mundo, as mulheres têm apenas 15% do poder político exercido pelos homens, mas no Brasil este índice é de apenas 6,1%. Por fim, a questão dos direitos remete ao ambiente da Justiça. Aqui reside outro fator de atraso de nossa democracia. O País tem 14 mil juízes ativos e uma estrutura precária para fazer o serviço jurisdicional. Pouco. Por tudo isso, a qualidade de nossa democracia deixa a desejar. O chiste ainda é oportuno: dos quatro tipos de sociedade, a nossa é a mais esculhambada. Na inglesa, a mais civilizada, tudo é permitido, salvo o que é proibido; na alemã, tudo é proibido, salvo o que é permitido; na totalitária, tudo é proibido, mesmo o que é permitido; e na brasileira, tudo é permitido mesmo o que é proibido.
Editado por Giulio Sanmartini às 11/26/2006 02:07:00 AM |
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