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INIMIGOS DO POVO
Por Eliana Cardoso em O Estado de São Paulo
Chegou a hora da verdade. À medida que Lula nomear seus comandantes, a política econômica do segundo mandato ficará mais clara. Por enquanto se especula sobre a possibilidade de cenários opostos. De um lado, o bom senso com controle de gastos. Do outro, apenas mais do mesmo: um Estado que rouba espaço do setor privado em cerca de 1% ao ano.
Aterrador? Talvez. Mas imperceptível no dia-a-dia, como a água que corrói a rocha aos bocadinhos. Enquanto a carga tributária subia 12 pontos porcentuais do PIB nos últimos 12 anos, a dívida líquida do setor público aumentou de 30% do PIB para mais de 50%: um acréscimo médio de 1,7% do PIB ao ano.
O nó fiscal prejudica o investimento, como também o faz a guerra de desinformação na qual o PT explorou sentimentos nacionalistas com a ameaça de que a oposição venderia a Petrobrás. A desinformação causou mal-estar entre o eleitorado mais sofisticado, mas não surpresa. Pois a política no Brasil não é diferente da do resto do mundo. Em 2002, Bush usou a desinformação para conquistar o apoio do eleitorado americano na invasão do Iraque. Na Rússia de hoje, Putin manipula a xenofobia popular contra cidadãos do antigo império soviético, da mesma forma que o PT deseduca a população a respeito das privatizações.
Se a guerra de desinformação não surpreende, também não surpreende a indiferença do eleitor brasileiro às denúncias de corrupção. Nem mais sábio nem mais cínico que os eleitores de outros países, o eleitor brasileiro escutou acusações de um e outro lado e peneirou contradições. Achou melhor consultar o bolso. Viu a inflação em queda e a massa salarial em alta. Reelegeu o presidente, apesar dos escândalos e de uma campanha eleitoral que não ajudou a reputação de nossos representantes.
Como o eleitor de 2006, Henrik Ibsen em 1882 também andava furioso com os políticos. Determinado a exibir a hipocrisia de conservadores e liberais, o dramaturgo escreveu Um Inimigo do Povo. Seu herói, Thomas Stockman, é um cientista que descobre que a água de sua cidade está poluída e pretende alertar a sociedade. Entram em cena uma eleição e dois políticos. O prefeito conservador quer encobrir a história. Afinal, o turismo e a renda da cidade dependem da estação das águas. A imprensa progressista se alia ao doutor, mas muda de lado ao descobrir que a causa é impopular, pois exige aumento de impostos. Conservadores e liberais, então, se unem para desacreditar o cientista, declarado inimigo do povo em assembléia pública.
A peça irônica e atual permite leituras diferentes. Na primeira, conclui-se que a sociedade não tolera o indivíduo que proclama uma verdade considerada pela maioria como perigosa e diabólica.
O exemplo clássico da sabedoria injustiçada é Galileu, e aqui peço licença para uma digressão. Nem todos concordam que o italiano tenha sido vítima de uma religião intolerante. Na Vida de Galileu, Bertolt Brecht faz o cientista comportar-se de forma atroz. Ele rouba os créditos pela descoberta do telescópio que se vendia em Amsterdã. Põe sua família e seus amigos em perigo. Destrói o espírito inquisitivo da filha. E, sob pressão, renega sua crença no sistema solar. Eis um grande homem capaz de coisas terríveis em tempos difíceis.
Brecht reescreveu a peça muitas vezes na tentativa de tornar seu personagem repugnante. Não conseguiu. A audiência continuou a ver em Galileu um herói, e não um vilão, assim como o eleitor brasileiro continua a ver em Lula um líder social, apesar da corrupção do PT.
O espectador admira Galileu porque Brecht o faz explicar o sistema de Copérnico com um deleite sincero e é impossível deixar de se identificar com a alegria que a descoberta da verdade propicia. No caso da política brasileira, talvez o eleitor perceba o entusiasmo de Lula na defesa de uma política para o pobre como mais verdadeiro do que o ataque à corrupção feito por rivais.
Voltemos a Ibsen e ao “inimigo do povo”. Ele abraça sua verdade e sofre o castigo social. Num diálogo no começo da peça, a mulher do cientista lhe pede prudência: “Pense! O prefeito tem o poder do seu lado.” Ele responde: “Sim, mas eu tenho a verdade do meu.” E ela: “Sem poder, de que serve a verdade?”
Dr. Stockman convoca um comício. Percebe que os políticos manipulam o auditório, mas não tem respostas para problemas concretos. Preocupado com a verdade e o envenenamento dos turistas, não pensa nas conseqüências de suas descobertas. Quanto custará a obra de saneamento? O que vai acontecer se a cidade ficar sem uma fonte de renda durante dois anos?
Na sua repulsa aos políticos, o cientista volta-se contra a população. E, assim, o radical de coração aberto do primeiro ato se transforma no inimigo do povo no final da peça. Os radicais acreditam que farão valer uma verdade sagrada. Mas a indignação que lhes dá energia se transforma em ódio e ineficácia. Quando a história do dr. Stockman termina, a água da cidade continua poluída.
Um Inimigo do Povo é também a história do conflito entre a ambição do indivíduo e a responsabilidade social. Entre ideais e realidade. Entre verdade e poder. Seja na peça de Ibsen, seja no Brasil de hoje, a luta pelo poder torna quase impossível realizar as reformas de que o País precisa.
Embora ineficaz, o cientista de Ibsen comove o espectador, que ainda assim desconfia da ambição por trás de seu idealismo. O dramaturgo, que o criou, também luta por sua verdade, embora tenha escrito num poema: “Eu apenas pergunto. Minha tarefa não é responder.”
Perguntar e responder são tarefas difíceis. Especialmente num mundo em que os verdadeiros inimigos públicos oferecem falsidades de montão, sem-cerimônia nem pudor. Mas as perguntas não calam. Quem é falso? Quem é autêntico? Que interesses estão em jogo e quem, de fato, os defende?


Editado por Giulio Sanmartini   às   10/30/2006 04:42:00 AM      |