Por Denis Lerrer Rosenfield em O Estado de São Paulo As idéias estatizantes, vagamente socialistas e contra a livre-iniciativa foram vitoriosas nesta eleição. Quando se poderia esperar um aprofundamento das mudanças, com ênfase num enxugamento do Estado e em sua maior eficiência, observou-se um recrudescimento de idéias contra as privatizações, como se estas fossem as responsáveis por todos os males do Brasil. Fatos inequívocos, como a falta de capacidade de investimento do Estado, a ineficiência dessas empresas, o seu uso político e fisiológico, a corrupção de que muitas padeciam, foram deixados de lado, como se um grande bem tivesse sido jogado no lixo. Fatos inequívocos das empresas privatizadas, como desempenhos estupendos, foram simplesmente considerados uma forma de espoliação de um bem nacional, algo que teria sido subtraído indevidamente da Nação. Idéias são como óculos através dos quais vemos a realidade. Nunca chegamos nus diante das coisas, mas sempre “vestidos” de determinadas concepções que dão forma ao que vemos e compreendemos. A realidade sempre aparece recortada de uma determinada maneira. No que diz respeito à vida da sociedade, as idéias orientam nossa compreensão do mundo e nossas ações, de modo que agimos segundo o que elas estabelecem. Eis por que é da máxima importância que as idéias mudem, para que a sociedade também possa mudar.
Num mundo eletrônico, com um fluxo colossal de informações, esse processo é ainda mais potencializado pelos meios de comunicação. Mudar a sociedade passa por uma mudança das idéias. Em sociedades democráticas e eletrônicas, qualquer transformação implica formação da opinião pública, de tal maneira que esta, sob o influxo de novas idéias, constitua uma nova forma de realidade, transformando, de fato, a sociedade. Um exemplo particularmente interessante é o processo de privatizações levado a cabo pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Sem dúvida, esse processo foi um enorme sucesso, possibilitando que empresas deficitárias se tornassem modernas e superavitárias, algumas delas se tornando players globais. A sociedade foi beneficiária desse processo, porém as privatizações não vieram a ser consideradas um bem. O PT, na oposição, sempre foi contrário às privatizações, não tendo jamais se cansado de acusar os seus responsáveis de beneficiários de negócios escusos. Privatização tornou-se sinônimo de privataria, como se o problema estivesse assim resolvido. O discurso ideológico permaneceu intacto, apesar da realidade ser bem outra. Ao chegar ao poder, o PT nem sequer cogitou de reestatizar essas empresas, tampouco levou adiante averiguação alguma sobre a suposta corrupção nelas envolvida. Durante quatro anos conviveu perfeitamente com esse processo. Ora, o partido procurou tirar o foco da corrupção vigente em seu governo, retornando a idéias anteriores, a um imaginário político que continua presente no País. Como o imaginário antiprivatizante continua atuante, toda a estratégia eleitoral petista consistiu em reforçar a opinião pública no que dizia respeito a essas idéias. E foi particularmente bem-sucedida, conseguindo reavivar todo um ideário atrasado populista e de esquerda. E os tucanos não souberam reagir. Geraldo Alckmin gastou tempo tentando demonstrar o que seria “indemonstrável” à opinião pública, a saber, que não pensava em privatizar empresas como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e os Correios. “Indemonstrável” porque as idéias vigentes não permitiam ver que não havia nenhum projeto desse teor. Elas só permitiam ver a vinculação desse “fato” com o fato das privatizações realizadas pelo governo tucano. O peso das idéias e, em particular, a valorização negativa das privatizações junto à opinião pública eram de tal ordem que fatos não puderam ser vistos. Aos tucanos não ocorreu fazer uma defesa explícita das privatizações realizadas. Teria sido fácil mostrar que um telefone convencional, antes, valia entre US$ 4 mil e US$ 5 mil (e ainda assim demorava para ser entregue), enquanto, agora, custa R$ 50, estando à disposição sob a forma convencional e de celular. O problema reside em que os tucanos fizeram no passado uma defesa envergonhada das privatizações, um mal menor, e jamais uma clara defesa delas, incorporando-as às suas idéias e a seus princípios. A opinião pública não foi trabalhada nesse sentido. Neste contexto, sobrou aos tucanos dizer que era tudo mentira, porém, no uso da mentira, os petistas foram particularmente habilidosos. Os fatos foram desaparecendo em proveito da versão petista - na verdade, uma mentira que estava, porém, fortemente ancorada no imaginário vigente. E esse imaginário continua marcado por idéias tradicionais de esquerda, como se coubesse ao Estado resolver todos os problemas econômicos e sociais, inclusive com empresas estatais que preencheriam essa função dita pública. Graças a essas idéias, Lula e o PT conseguiram pautar o debate a partir da distinção entre esquerda e direita. O eleitorado de Heloísa Helena e o de Cristovam Buarque puderam, então, se identificar com Lula. E os ditos movimentos sociais se puseram novamente em ação. O peso a ser carregado será o de que o governo, o PT e os “movimentos sociais” se sentirão legitimados a agir segundo o ideal de esquerda, que o atual governo tinha, em vários pontos, enfraquecido, se não descartado. Um segundo mandato poderá inaugurar-se sob o signo de fortalecimento dessas idéias, que passarão a conduzir setores governamentais e partidários. Já há indícios nesse sentido da parte de tendências do PT e de anúncios do MST de que retomará suas ações. Poderão apresentar a conta de uma vitória que atribuem a si mesmos. As idéias estatizantes e vagamente socialistas vieram tomar o lugar da realidade. Qualquer contestação dessa “verdade” voltou a ser considerada uma desprezível posição “neoliberal”. A fatura de tal tomada de posição será paga nos próximos quatro anos.
Editado por Giulio Sanmartini às 10/30/2006 04:39:00 AM |
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