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MALANDROS & OTÁRIOS
Por Ipojuca Pontes em Mídia sem Máscara
“Nunca jogue limpo com um otário”
(do malandro Barnum)
O malandro é figura antiga na paisagem social brasileira. Já no Brasil colonial o tipo foi esboçado com traços realistas nas “Memórias de um Sargento de Milícias”, romance pioneiro de Manuel Antônio de Almeida (1831-1861): de início, com seus truques e negaças, ele só queria distância do trabalho, no afã de sobreviver e se dar bem em meio à adversidade e à rigidez do sistema. Já vigorava no pedaço o famoso Vidigal, cujos bate-paus os malandros cariocas enfrentavam com golpes de astúcia e capoeira. Na transição do século XIX para o século XX, os malandros, vegetando pelas beiradas dos morros, foram mudando de métodos, instrumentos e indumentária: em vez do jogo de pernadas adotaram o manuseio da navalha, os calções rústicos foram substituídos pelos ternos (de “borracha”) de calças de boca apertada, os tamancos grosseiros trocados pelos sapatos de duas cores de bico fino, e o gestual e a conversa macia e rica de gírias acabaram por tomar a vez dos gritos e das correrias desenfreadas. Ah, o detalhe: na cabeça, sempre, o chapéu cinza de copa alta, marca de distinção, elegância e estilo.
Quando cheguei ao Rio, nos anos de 1960, fui morar na rua Cândido Mendes, no final da Glória, na boca da Lapa. Comia com os malandros no secular “Capela”, impressionado com os modos e a estética do tipo. Sim, é fato: em plena era do Lacerda, a praia do Flamengo sendo engolida pelo Aterro de D. Lotinha, e o malandro ali, na Lapa terminal, insistindo em permanecer vivo. Mas, ainda assim, com estilo e tudo mais, terminou como peça de folclore. Em parte, filmei “Pedro Mico” inspirado na figura do malandro “Buck Jones” e nas anotações que fiz daquela época.
De pronto, o que impressionava no malandro era a linguagem bruta, mas imaginosa, quase codificada, das gírias. Assim: “O vacilão, sem amansar a justa, quis dar o pinote, mas se ferrou...” – dizia o vagabundo para o outro, explicando as desventuras de um terceiro. “Mas, no aroma da perpétua, teve de abrir o cadeado. Agora, não tem alpiste: o 281 pegou pesado e vai cagar na gaiola até a merda cantar”. Às vezes, penso que seria preciso um intérprete para entender o palavrório daquele universo transbordante de “cagüetes”, “entregação”, “bagulhos”, “armações”, em que o importante, para se chegar à “grana legal”, era o “saber chegar”, pisando “ao de leve” para não “pintar sujeira”. Mas, no “Capela” e arredores, a conversa entre malandros culminava, invariavelmente, na debochada saudação à figura do otário, tipo genérico sem o qual o malandro – e a própria malandragem - não poderia existir.
O Novo Aurélio define o otário como: “indivíduo tolo, simplório, fácil de ser enganado”. Certíssimo! Há séculos sabe-se o que é o otário mas, de fato, quem é ele, de onde vem ou para onde vai? Bem, a resposta não é difícil: o otário sou eu, você e a maioria da humanidade, os que trabalham, pagam impostos, têm fé, acreditam no próximo e mantêm, contra qualquer sintoma da razão, a esperança de que “dias melhores virão”. Como já foi dito, o otário, ademais, é o sujeito que perdeu, ou nunca possuiu, a capacidade de pensar de forma clara e realista. Na expressão de H. L. Mencken, a quem não se pode acusar de bobo, o otário só pode ser visto como um doente crônico, cuja possibilidade de cura, mesmo diante de medidas preventivas radicais, é exatamente NENHUMA.
Como disse anteriormente, o malandro da Lapa virou peça de folclore: adeus o velho estilo do “saber chegar” pisando “ao de leve”, adeus calça de boca apertada e sapato de bico fino. O vagabundo romântico foi substituído pela quadrilha organizada. O malandro antigo, no máximo um rufião ou batedor de carteira, ingressou na gang politizada, ligada ao narcotráfico do terrorismo globalizado, vinculou-se à organização criminosa que, armada com os mais poderosos mísseis, rifles de repetição e escopetas, processa com destreza a tecnologia digital. Em resumo: saiu o “Buck Jones” e entrou o Fernandinho Beira-Mar, Marcola e - por que não?- o próprio Stédile.
E o malandro? Ele não pode ter desaparecido assim! Suas raízes são profundas na nossa vida social. Para onde ele foi? Bem, eis aqui a resposta inquestionável: o malandro ressurgiu com força total e absoluta no cenário da vida política nacional e, hoje, salvo exceção, impera em Brasília (e, em Brasília, no Palácio do Planalto e no Congresso – e no Congresso, na Câmara e no Senado). É de lá, onde emana o poder e a grana fácil, que o malandro moderno deita e rola em cima da patuléia ignara – vale dizer, dos otários de todos os quadrantes nacionais que nascem a cada segundo.
Verdade seja dita: no seu novo pouso, o tipo se renovou. Por exemplo, o vestir da tosca “borracha” foi substituído pelos ternos bem ajustados do Giorgio Armani, os sapatos agora são importados, os colarinhos impecáveis e as gravatas se distinguem pela discrição. A linguagem também mudou. Salvo no Planalto, onde nas salas presidenciais (e nos vôos do AeroLula) os “babacas”, “bundões”, “merdas”, “dedo no c...” e a “p.q.p.” abundam em profusão depois do quarto uísque, o tratamento dispensado entre os pares congressuais, sobretudo diante das câmeras de TV, é sempre na base do “nobre deputado”, “ilustre senador” - enquanto as falsas promessas, apoiadas em fartas e rebuscadas frases de efeito, escondem os interesses mais vis e as jogadas mais rasteiras.
Sim, amigos, eis a grande descoberta que, de fato, não é descoberta nenhuma: estimulada pelo jogo corrupto da Era Lula, manancial de sanguessugas e mensaleiros, a malandragem política tomou conta de Brasília e fez esquecer o malandro da Lapa, em última análise um pé-de-chinelo bobo e ignorante. Mas as eleições vêm aí e devemos, todos nós, os otários, votar.
É a parte que nos cabe neste latifúndio.


Editado por Giulio Sanmartini   às   9/18/2006 01:17:00 AM      |