Por Gilberto Dupas em O Estado de São Paulo Nas últimas décadas inventamos uma versão privatizada da modernidade, em que tudo é responsabilidade do indivíduo. Para além de programas assistencialistas, que dão um pouco de recurso público a famílias com fome, quase não há mais agenda coletiva. Salvo alguns movimentos mais radicais, como o MST, visões comunitárias já não definem as identidades. No máximo nos identificamos, e somos identificados, como torcedores de times de futebol. O último partido de expressão cujas bandeiras os militantes tinham orgulho de agitar foi o PT - hoje, muitos deles se esgueiram pelos cantos, ou desistiram da política e vão pensar nela apenas na véspera da eleição. Até por que, para além do falatório de campanha, quais são as teses e os programas concretos que diferenciam os partidos? A conseqüência é que deputados e senadores mudam de legenda como mudam de camisa. Aparentamos estar muito mais predispostos à crítica, mais briguentos e intransigentes. Mas nossa crítica não tem dentes, não produz efeitos sistêmicos nas nossas opções de política e de vida. A suposta inédita liberdade que a sociedade atual oferece veio acompanhada de uma impotência sem precedentes em áreas fundamentais. Movemo-nos com mais rapidez. Mas para onde? O ônus pesado dessa "emancipação" recai sobre as camadas médias e baixas. Anseia-se por um contrato de trabalho formal e só se consegue alguma atividade remunerada no informal. Sentimos saudades dos empregos que as fábricas "fordistas" ofereciam no início do século passado e que permitiram a construção da pujante classe média de então. Tudo foi desregulado e privatizado, cedido à coragem e às energias individuais. E quem não as tem o suficiente? Os mais fracos, desprotegidos ou azarados ficam pela estrada, sem nenhuma proteção para além da eventual caridade aos mais pobres e da sedução perversa do submundo do crime.
Os governos comprometem-se com o índice de inflação e o superávit nominal, mas não com a qualidade do emprego dos cidadãos. Até dar esmola virou estimular a vagabundagem. Margaret Thatcher gostava de dizer: "Não há mais salvação pela sociedade. Não existe a sociedade." Agora não se deve olhar nem para cima nem para baixo, e sim para dentro de si, onde se supõe residam astúcia, vontade e poder - ou seja, todas as ferramentas de que se necessitaria para progredir na vida. Acrescente-se "com a ajuda de Deus" e temos algo como a pregação de várias igrejas que se multiplicam como cogumelos pelo País afora, dominam canais de televisão e têm bancadas expressivas no Congresso. Muitos aplaudem, perguntando o que seria da sociedade sem elas a consolar, motivar ou iludir esse enorme povo sofrido. Talvez tenham razão. Na era da "liberdade do consumidor", homens e mulheres não têm mais a quem culpar por seus fracassos e frustrações. Ou seja, a liberdade chegou quando já não se pode fazer muita coisa com ela, a não ser escolher a marca preferida de tênis ou de celular. O público tornou-se escravizado pelo privado. O interesse público fica limitado à curiosidade pela vida privada das figuras públicas; se em meio a ela aparecem a perversão e a falcatrua, então é uma festa. A política fica resumida a crônicas ao estilo Nelson Rodrigues, e arrematamos com o refrão: "São todos ladrões, ninguém se salva." Como vamos construir a democracia com essa ilusão escapista? Afinal, o Congresso Nacional nada mais é que uma razoável vitrine dos vícios e virtudes de nossa sociedade, especialmente de uma parte das elites. Os que jogam pedras estão por aí sempre a cometer seus pequenos e grandes deslizes, a começar pelos serviços sem nota e o suborno ao guarda. Não se pense que encontraremos saída para esses males nos nossos maravilhosos novos telefones celulares com imagem digital, na banda larga da internet ou na TV de plasma. As realidades virtuais não substituem as crenças reais; nelas entramos com muita facilidade para, logo em seguida, nos percebermos abandonados. Estamo-nos transformando em indivíduos absortos em perseguir e capturar ofertas piscantes do tipo "clique aqui", e perdendo a capacidade de estabelecer interações espontâneas com pessoas reais. Nas redes virtuais há apenas ilusão de intimidade e simulacro de comunidade. Os espaços públicos estão coalhados de pessoas zanzando com telefones celulares, falando sozinhas em voz alta, cegas às outras ao seu redor. A reflexão está em extinção. Usamos nosso tempo para obsessivamente verificar a caixa de mensagens em busca de qualquer evidência de que, em algum lugar do mundo, alguém esteja querendo falar conosco. Bruta solidão. Nossa sociedade está deixando de se questionar a si mesma. Já não vemos alternativas reais para temas importantes. Portanto, não temos mais o dever de examinar, demonstrar, justificar ou validar qualquer dos seus pressupostos. Para Sygmunt Bauman, o espaço que se oferece à crítica pode comparar-se com o esquema de uma área para acampar. O lugar está aberto a todos aqueles que tenham equipamentos apropriados. Aos hóspedes não interessa muito como se administra o lugar, bastando que lhes seja assegurado suficiente espaço para estacionar, que as conexões e os sinais estejam em bom estado e os vizinhos não façam ruído após o anoitecer. Jamais lhes ocorrerá questionar a gestão do lugar, e menos ainda se encarregarem dessa responsabilidade eles mesmos. Ou seja, é muito fácil criticar a classe política se ninguém se dispõe a construir uma mensagem reformista, trabalhar por um partido ou mesmo virar um político sério. Como vamos sair dessa crise geral da sociedade e da política? Parece útil começarmos a pensar a respeito. Quem sabe as eleições que se aproximam sejam uma oportunidade!
Editado por Giulio Sanmartini às 8/19/2006 04:39:00 AM |
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