Estado de S.Paulo
Mais de um mês depois, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda não começou a cumprir a promessa feita após a reeleição de que os jornalistas iriam 'se cansar de tantas entrevistas coletivas' - resposta a uma cobrança que percorreu boa parte de seu mandato. Até pelo aspecto solene, esses eventos são vistos como a forma clássica de um governante prestar contas à sociedade. Muitas vezes por isso mesmo, as coletivas costumam ser evitadas por ocupantes do Planalto, num país onde as relações entre governo e imprensa dependem de atos de vontade e inclinações pessoais de quem está no poder. Fora do governo depois de ter sido assessor de Lula durante dois anos de mandato, o jornalista Ricardo Kotscho admite: 'O governo teve dois problemas de relacionamento no primeiro mandato. Um com o Congresso, o outro com a imprensa. As relações com o Congresso estão melhorando. Mas não vejo o menor sinal de progresso nas relações com a imprensa'. Numa declaração que dá uma idéia do tamanho do problema, Kotscho afirma: 'Não me pergunte como resolver isso. Passei dois anos no Planalto e não consegui fazer nada. Se soubesse, teria feito'.
Esse convívio tenso produziu, digamos, acidentes e tragédias. Responsável por um dos três mais altos faturamentos da TV Record, o apresentador Boris Casoy está convencido de que teve seu contrato com a emissora rompido em dezembro de 2005 - 11 meses antes do prazo fixado - em função de pressões do Planalto. A rotina de Casoy nos três anos de governo Lula foi uma composição de episódios preocupantes. Convocado a Brasília, um executivo da empresa recebeu o extrato de uma conta do apresentador das mãos de políticos ligados ao governo - prova de que seu sigilo bancário fora quebrado. Um político ligado à Igreja Universal, proprietária da Record, costumava responder com segurança aos comentários de que a empresa deveria zelar pela independência de seu noticiário: 'Não interessa. Eles são governo e nós temos interesses'. Numa reunião em Brasília, um executivo da área comercial foi informado de que a emissora poderia desistir de seus pleitos para novos planos de publicidade 'porque não se podia fazer nada enquanto Boris estivesse lá'. A direção da TV Record foi procurada para comentar esses episódios, mas não deu resposta aos pedidos de entrevista. Embora admita que seria impossível provar esses relatos, Boris Casoy lembra que revelam um ambiente de hostilidade à imprensa. 'O presidente Lula tem uma visão distorcida', diz. 'As críticas são vistas como hostilidade até pessoal, quando não por engajamento político oposicionista.' Em palavras próprias de quem já esteve nos dois lados do balcão, o colunista Cláudio Humberto, o porta-voz 'bateu-levou' de Fernando Collor, lembra que 'a relação entre governo e imprensa tem de ser tensa. Se tudo estiver bem para os dois lados é que alguma coisa está errada'. Ainda assim, o caso do governo Lula envolve particularidades. Ao longo do primeiro mandato, o PT produziu a maior coleção de atos jurídicos registrados pela revista Veja desde a democratização. No final de 2005 o partido entrou com uma ação por danos morais em função de oito capas da revista, acusadas de alimentar 'uma campanha para denegrir a imagem do partido'. Em 2006, três jornalistas foram chamados a prestar depoimento numa investigação em que a Polícia Federal procurava descobrir a fonte de uma reportagem sobre uma possível operação para livrar Freud Godoy, amigo de Lula, na ação para a compra do dossiê Vedoin. Ao longo do ano, uma duzia de ações foram acumuladas contra a revista. 'Esse volume mostra que querem produzir ameaças econômicas em função de altos custos de indenizações e mesmo de acompanhamento de processos', afirma o advogado Djair Rosa, há duas décadas na área. Toda pessoa que se considere vítima de um erro de imprensa tem o direito de bater às portas da Justiça. 'Mas é estranho que um partido político resolva abrir processos que envolvem o direito de opinião', afirma Djair. Perseguido por repórteres que chegaram até a cantar o slogan 'Lula-lá' durante a campanha, Fernando Collor evitava coletivas, mas aceitava pedidos de entrevistas individuais. Numa das raras coletivas, a repórter Sonia Carneiro, que hoje é assessora no Planalto, fez uma pergunta que todos gostariam de fazer, mas que causou alvoroço: perguntou se o presidente, cada vez mais magro, fora contaminado pelo vírus da aids. Fernando Henrique não gostava de coletivas nem de entrevistas de gravador ligado. Preferia receber jornalistas para conversas informais, onde suas declarações eram publicadas na forma de 'falou a um amigo' ou 'disse a um interlocutor'. Era uma forma de garantir o controle da conversa e de negociar cada palavra publicada. Mesmo assim, a palavra do presidente circulava pelo País e era possível fazer questionamentos pontuais. Durante o governo FHC surgiu a expressão 'denuncismo', para abafar investigações que não agradavam ao Planalto. Em 2000, o programa Opinião Nacional, da TV Cultura, fez uma entrevista com João Pedro Stédile, líder do MST. A entrevista não foi exibida na TV Nacional, de Brasília, e na Educativa, do Rio de Janeiro, ligadas ao governo federal. Existem duas verdades conhecidas na convivência entre todos os presidentes e a imprensa. A primeira é que os presidentes se consideram no legítimo direito de receber elogios e consideram toda crítica, em princípio, injusta. A segunda é que detestam notícias sobre sua vida privada, em especial sobre familiares. Numa decisão que mudou para sempre suas relações com a mídia, Lula tentou expulsar o correspondente americano Larry Rohter por causa das referências a seu pai e não pelas insinuações em torno de seu gosto por bebidas alcoólicas. Hoje, nada o incomoda mais do que as reportagens sobre a empresa de Lulinha. Seus assessores perguntam aos repórteres se filhos de outros presidentes receberam tratamento semelhante. É uma questão sem resposta, pois não se conhece outro caso em que uma prestadora de serviço público tornou-se sócia do filho do presidente.
Editado por Anônimo às 12/03/2006 08:45:00 AM |
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