Daniel Piza, no Estadão
Se existe algo em comum, apesar das doses variadas, em quem 'governa o Brasil há 500 anos', como gosta de dizer o presidente, é o que o próprio governo Lula demonstra à perfeição: a aliança entre a incompetência e o interesse. Desde o final das eleições, os exemplos foram muitos. Por mais que os ditos analistas insistam em detectar uma maturidade democrática no País e no presidente, ou prefiram olhar o pouco que se avançou em vez de tratar do muito que falta avançar, os fatos e os dados seguem refutando as ilusões. O governo, mesmo popular, continua perdido nas decisões e voraz nos desvios.
O apagão aéreo é lamentável não só pelo tormento que causa aos cidadãos, mas também pela maneira como o governo reagiu a ele. Quando escrevi que achava estranha a afobação com que se jogava a culpa exclusivamente sobre os pilotos americanos, que teriam desligado o transponder do Legacy e ainda brincado de piruetas, fui mais uma vez acusado de, digamos, nacionalismo insuficiente. Agora não há pessoa bem informada que não saiba que o maior acidente de avião da história do Brasil - 'nunca antes', etc. - deve-se ao colapso do sistema de controle de vôos, causado pelo corte de verbas e loteamento de cargos. Gente séria não sai decretando culpa sem posse de informações transparentes.Nessa odiosa praxe de transferir responsabilidades, Lula, aliás, é o exemplo número 1. Ele nunca assume nada; em toda crise se omite como um tatu-bolinha.
Até agora não vi uma declaração ou discurso em que trate do problema dos aeroportos e traga para si a tarefa de tomar e cobrar medidas com prazos. Só sabe ser líder na hora de pegar o microfone ou posar para as fotos. Como não aproveitou o tempo em que não exerceu cargos públicos para se preparar, parece incapaz de administrar uma padaria. Como vai saber o que fazer num tema complexo como esse? Melhor deixar o ministro, Waldir Pires, passar vergonha diante das câmeras. Eis a diferença entre delegar e disfarçar.
Para quem fala tanto em Juscelino Kubitschek, foi constrangedor ver Lula culpando o câmbio fixo do primeiro mandato do governo anterior pela crise na agricultura, um dos fracassos mais ostensivos de sua gestão. (Isso para não falar na bravata de que queria a solução da crise do Incor 'em 48 horas' - e pelo jeito ela não virá nem em 48 dias.) Mais uma vez, o cerne do problema está no fato de que o governo não sabe o que fazer na área. Fala em agricultura familiar e dá dinheiro para o MST, mas não pode abrir mão dos dividendos dos grandes produtores, que fizeram do cerrado um dos principais fatores de melhora no IDH brasileiro. Entre José Rainha e Blairo Maggi, quem fica de fora é a exploração sustentável e democrática do potencial agrícola, bloqueado pela falta de infra-estrutura e pela desvalorização da Embrapa. Alguém imagina JK agindo da mesma forma?
Outro sintoma do despreparo desse governo é a quantidade de versões que surgem para cada questão importante do futuro breve. Há ministros contra e a favor da reforma política, da tributária, da previdenciária, etc. Ora se fala em cortar os gastos públicos, ora se diz que não é preciso cortá-los. Temas como Bolívia, meio ambiente, 'democratização da informação' e taxa de juros também levantam sinais dúbios. (Já outros temas, como cultura, esportes e turismo, nem sequer aparecem, reparou?) O resultado é que não existe uma agenda que permita planejar mudanças importantes para que o crescimento do PIB - que será igual ao do governo FHC, numa época em que o mundo cresce mais - se aproxime do 'espetáculo' prometido.
Ninguém sabe se é melhor tratar de pontos específicos em alguns setores para concentrar esforços na maior das prioridades. Por exemplo: em vez de reforma política, complicada até por ferir os planos de quem a decidiria (como a correção das representações estaduais), talvez fosse o caso de só instituir no momento a fidelidade partidária e investir na reforma tributária e trabalhista de verdade, que reorganizasse a federação, desonerasse o emprego, reduzisse a carga do contribuinte. Mas não; no Brasil sempre se opta por ajustes em vez de reformas, por conchavos em vez de consensos. (E mesmo os ajustes terminam não sendo respeitados: se a cláusula de barreira funcionasse, Aldo Rebelo, o Anacrônico, não poderia ser presidente da Câmara.)
A ligação com o PMDB é a melhor tradução disso. Lembro que escrevi que o PT seria um PMDB do século 21. Mas tantas foram as lambanças dos 'companhero' que Lula, fingindo não ter nada a ver com elas, botou o PT na parede, como retrato do passado, e fez do próprio PMDB - de Sarney, Barbalho e outros chefes de oligarquias que, como os mortos-vivos, sempre voltam - o suporte do lulismo, o único 'ismo' em vigor no Brasil. Enquanto isso, continuam debaixo do tapete as sujeiras cometidas no mensalão (ou 'sacolão', como rebatizou o vice-presidente José Alencar), no dossiê Vedoin, etc. Delúbio, Valério, Waldomiro e Gedimar, para citar apenas quatro cavaleiros do apocalipse petista, continuam passeando pelas ruas como se nada tivessem feito. Mas a PF, sim, faz uma operação a cada dois dias... A história é, de fato, uma humorista.
Editado por Anônimo às 11/26/2006 09:07:00 AM |
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