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LUTA PELO PODER
Por Jarbas Passarinho em O Estado de São Paulo
Quando Fernando Collor venceu as eleições em 1989, comprovou o boato de que a decisão de concorrer à Presidência da República fora tomada pelo “grupo da China”, assim chamado porque se reunira em Beijing em petit comité (em que se destacavam Collor e Renan Calheiros). Chegava ao poder um modelo novo, modernizador do Brasil asfixiado pela inflação, que ultrapassara 12.000% ao ano. Duraria 20 anos. O governo não tinha um plano de conquista do poder, exceto a fama de combater os “marajás do serviço público” e a promessa de uma política que indignasse a direita, que votara maciçamente nele, e deixasse perplexa a esquerda, que tinha em Lula o seu líder. A interpretação dessa frase passava por um governo que pusesse em prática o social-liberalismo inspirado no talentoso pensador José Guilherme Merquior, que permanecia embaixador no exterior. Eqüidistante tanto da direita como da esquerda, começava pela reforma da Constituição, que a maioria esquerdista escrevera na Constituinte de 1987/88. A extroversão da economia, a tentativa de aprovar seis propostas de emendas à Constituição, entre elas retirar da Petrobrás o monopólio do petróleo, passando-o para atribuição do Estado, as frases de efeito, como proteger os “descamisados”, dar “um tiro mortal no tigre da inflação” e obrigar as montadoras a produzir automóveis, e não “carroças”, despertavam apoio popular.
No campo da política, o presidente - informado por seus íntimos de que Orestes Quércia solidificara ameaça nas eleições seguintes, para o que teria amealhado US$ 1 bilhão para a campanha - teria decidido duplicar os fundos, não, porém, à custa da administração pública. A entrevista demolidora do irmão Pedro, em conflito de natureza financeira com o ecônomo PC Farias, encarregado de tornar possível a duplicação dos recursos atribuídos a Quércia, gerou a crise que levou ao impedimento do presidente.
Em 1994, chegando ao governo Fernando Henrique Cardoso, a maior expressão intelectual dos social-democratas, corria a notícia de que também planejava alcançar o poder por 20 anos, no mínimo. Prosseguiu com as tentativas de reforma da Constituição que Collor iniciara. Controlou a inflação, graças ao bem-sucedido Plano Real, que concebera com economistas paulistas quando ministro da Fazenda do governo breve de Itamar Franco. O efeito negativo das crises mundiais da economia russa e mexicana, aliado à desastrosa política cambial, que levou à maxidesvalorização do real, e ao indesculpável “apagão” da eletricidade primária, às privatizações nem sempre oportunas, à emenda constitucional da reelegibilidade, eivada de suspeições, tudo encerrou, ao cabo dos oito anos, o sonho de poder duradouro dos tucanos, com a derrota fragorosa de José Serra para Luiz Inácio Lula da Silva.
O PT chegava ao governo. Frei Betto, que já tentara ter parte no poder quando membro da guerrilha comunista de Marighella, subiu a rampa do Palácio do Planalto na condição pro forma de assessor religioso de Lula, na sala ao seu lado. Figura preeminente do governo, um dos encarregados do carro-chefe da propaganda humanitária do Fome Zero, causa da ovação de Lula na ONU, pouco depois se desencantou com o projeto e dele se retirou. Antes, porém, em artigo para a mídia, escreveu: “Nós estamos no governo, mas não ainda no poder.” Luiz Carlos Prestes nega, no livro ditado a jornalistas comparsas, ter dito o mesmo, no Recife, recebido com pompa por Arraes. Mas não convenceu a negativa. O poder ele esperava conquistar, depois de aliado a Jango, da “burguesia esclarecida”, mas a deposição de Jango inviabilizou seu projeto. Lula, mestre do mimetismo político, silencioso deixava-se traduzir pelo frade que não gosta de papas. O que jura nunca ter sabido é do mensalão, para formar uma base governista e reformar a Constituição. Compuseram-na probos parlamentares caluniados por Roberto Jefferson, que os disse vendidos.
Nisso consiste a calúnia, pois gente dessa natureza não se vende, aluga-se enquanto é paga, com dólar vindo do exterior confessadamente por Duda, o marqueteiro mágico, ou pelas estatais a serviço nobre da causa. Perda de tempo é rememorar os feitos da “organização criminosa”. Tudo já está esquecido e sepultado. A derrama de dinheiro público desviado - e parte mantida no exterior, como a do dossiê que é a sujeira da vez - mostra o louvável zelo com que empregam os impostos que pagamos.
Petistas coerentes, muitos ainda de quem Lula ri da fidelidade ao velho Marx, choraram ao conhecerem a manobra escabrosa. Fundaram outro partido. Competiram no primeiro turno e ajudaram a submeter Lula a trocar a empáfia, derrotado, pela falsa humildade no segundo turno. Nunca tive dúvida, porém, de que os 51,3% de eleitores que o obrigaram a trocar a arrogância por novas alianças, que negociou com a máquina do Estado, não ficariam unidos no segundo turno. Não guardo nenhuma ilusão. Alckmin só contribuiu com pouco menos que 40 milhões de votos para obrigar Lula a calçar as sandálias da humildade. Estava eu certo de que os dissidentes, que somaram 10 milhões de votos, prefeririam fazer a viagem a Canossa, como Henrique IV ao dobrar os joelhos ante o papa. Assim Frei Betto. Escreveu um duro artigo, em fevereiro deste ano, sob título O poder mudou a face de Lula, mas antecipou: “Votarei pela reeleição dele.” O educado senador Cristovam Buarque esquecerá a demissão por telefone. A senadora Heloísa Helena ficará neutra, tantas as rudes palavras com que se refere a quem não sabe - como sempre - que dela foi feita uma montagem fotográfica como se tivesse posado para a Playboy. Mas seu vice, César Benjamim, de quem li uma das mais vigorosas críticas a Lula, atingindo o seu caráter oportunista, já adiantou que votará no petista. Chico Buarque, ídolo, também de esquerda, revelou uma razão compreensível: votará no Lula por “falta de opção”. A esquerda, que tem várias faces, jamais dará seu voto a quem não for da sua grei, mesmo que dividida.


Editado por Giulio Sanmartini   às   10/17/2006 02:48:00 PM      |