Por Pedro S. Malan em o Estado de São Paulo "Ladrão do erário apanhado em flagrante não pode alegar posição ideológica como atenuante" era um dos artigos do Código de Ética Mínimo publicado por Millôr Fernandes décadas atrás. Tampouco deveriam ser atenuantes a banalização do cinismo expressa na frase "todos, sistematicamente, fizeram e fazem o mesmo". Ou o argumento de que, se "erros" foram cometidos, o que importa é que a "intenção era boa" e a "causa era justa" em termos de seus fins últimos e da realização de "grandes coisas" (expressão que Maquiavel imortalizou). Estas reiteradas alegações de atenuantes, aparentemente, surtiram efeito. Para muitos, as eleições do próximo mês servirão como uma espécie de julgamento definitivo, do qual esperam cabal absolvição. Uma decisão que teria "transitado em julgado" ao passar pelo crivo das urnas. Aqueles que por elas fossem referendados - e suas relações diretas e indiretas - teriam sido "absolvidas pela História" e, portanto, as instâncias de uso criminoso da máquina pública para objetivos de natureza política deveriam ser relegadas ao esquecimento, agora em caráter definitivo. Como chegou a dizer Delúbio Soares no ano passado, em pouco tempo mais tudo viraria apenas "piada de salão".
Mas é exatamente nestes tempos de generalizado relativismo moral que é preciso reafirmar a importância de não se deixar levar pelas ondas de cinismo que as posturas acima mencionadas vêm gerando entre nós. Como se as batalhas recorrentes contra a corrupção estivessem sendo perdidas. Não estão. É só em Estados com instituições fracassadas, sociedades inermes ou ditaduras longevas que a corrupção sistêmica pode triunfar ou grassar sob o manto protetor da impunidade e da inexistência de uma opinião pública digna deste nome. Há quem considere - como, por exemplo, José Murilo de Carvalho em entrevista recente - que esta opinião hoje no Brasil tem duas caras e duas vozes: uma opinião pública que se expressa na mídia e uma opinião nacional que se expressa nas urnas. A primeira seria formada pelos quase 20% do eleitorado que têm curso secundário completo ou perto disso. A segunda, pelo restante dos 126 milhões de eleitores, a maioria vivendo mais próxima do reino da necessidade e, portanto, tendente a apoiar quem mais lhe pareça capaz de ajudá-la, no que for, por ocasião de cada eleição específica. É preciso reconhecer o apelo do que José Murilo denominou "social-clientelismo" - seu discurso e sua prática -, um fenômeno de raízes históricas entre nós e que viceja com especial força quando encontra instrumentos e condições políticas adequadas. Como a vertiginosa aceleração da expansão de gastos públicos, inclusive com programas de transferência direta de renda neste período pré-eleitoral. Programas que, iniciados em administrações anteriores, deveriam ser vistos como políticas de Estado, e não apresentados como benevolência de um governante específico. Mas é preciso reconhecer também que, independentemente de inclinações políticas, parcelas relevantes tanto da opinião "pública" quanto da opinião "nacional" consideram inaceitável que alguém utilize uma posição oficial de forma criminosa, em beneficio próprio ou de sua família, quadrilha ou "organização". Quanto mais não seja, porque a maioria esmagadora da população brasileira não utiliza tais procedimentos em sua dura vida cotidiana. Em resumo, assim como em outras áreas, e penoso como possa ser, há um processo de aprendizado coletivo que, apesar de lento, caminha na direção certa e é fundamental ir consolidando. Foi assim no mundo hoje desenvolvido. Não se trata de mudar a natureza humana (como diria Millôr, "o ser humano não falha"), mas de limitar o espaço do cinismo, da desfaçatez, da hipocrisia e, fundamentalmente, da impunidade. Algo que não é resolvido com o resultado de uma eleição, tentador como pareça a alguns. Deixem-me concluir este artigo com um exemplo de outra área em que é importante ser não-cínico, apesar das tentações envolvidas, porque há sinais de vida e bases sendo construídas para um mínimo de convergência dentre a opinião pública responsável "deste país". Mas há também um penoso caminho à frente. Refiro-me à necessidade de avanços duradouros nas duas áreas-chave, e interligadas, dos quais depende hoje a criação das bases para um maior e mais sustentado dinamismo da economia brasileira: a questão fiscal e a questão da redução das barreiras (microeconômicas, regulatórias e institucionais) ao investimento privado, sem o qual - no Brasil de hoje - não haverá crescimento a taxas mais elevadas que as do período recente. Sejamos não-cínicos e, sem grandes ilusões, continuemos o debate, no momento ainda restrito, paradoxalmente devido às eleições. Deixem-me exemplificar: em 30 de agosto, a Consultoria Tendências reuniu ex-ministros da Fazenda e o atual ministro do Planejamento para um debate sobre as questões acima. Houve uma razoável e promissora base de convergência sobre a natureza específica do desafio a enfrentar (controle plurianual - e crível do ponto de vista legal - da taxa de expansão dos gastos primários recorrentes de consumo do governo como proporção do PIB; com a discussão de medidas específicas para tal no curto, médio e longo prazos). Entretanto, no mesmo dia em que Bernardo e Palocci diziam coisas sensatas sobre estas questões, o PT divulgava oficialmente pela imprensa o seu programa de governo para o segundo mandato do governo Lula. E o presidente do PT dizia: "A expansão do gasto público é uma característica de um governo que tem uma estratégia para expandir este gasto." Acrescentando, de passagem: "Obviamente limitado às condições macroeconômicas." Como ilustração do ponto, ver o texto do ministro Tarso Genro ao Conselhão e a proposta orçamentária para 2007. É preciso reafirmar a importância de ser não-cínico e confiar nas reservas de bom senso que o País ainda detém. Mas como diria Fernando Pedreira: haja confiança!
Editado por Giulio Sanmartini às 9/10/2006 07:14:00 AM |
|