Por Carla Rodrigues em no mínimo O jornalista Ali Kamel é terminantemente contra a adoção das cotas raciais nas universidades públicas. Até aqui, poderia ser apenas mais uma opinião, partindo de pontos de vista ou argumentos pessoais. No entanto, o que se lê na publicação de “Não somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bi-color” (Nova Fronteira, R$22, 144 p.)é mais do que isso. O livro é um bem abalizado estudo sobre que discursos, estatísticas e métodos estão envolvidos no debate sobre as cotas. A conclusão de Ali é óbvia, mas nem por isso menos importante: números e argumentos utilizados no debate das cotas passam por manipulações políticas para atender a um ou a outro lado. Embora seja leitura indispensável para os envolvidos no debate, é preciso encarar os ensaios de “Não somos racistas” como mais um conjunto de argumentos que, sob o manto da objetividade, também está a serviço de uma causa. Se há, como o próprio autor indica, maneiras de ler os números e os textos para a defesa de um dos lados, é razoável pensar que seu livro seja mais uma forma de enfrentar as estatísticas em prol de determinados argumentos. Não há nada de errado nisso. Só não se pode crer que é um comportamento apenas dos outros.
“Não somos racistas” é uma desconstrução de indicadores e autores que justificam a adoção das cotas raciais no Brasil. Ali corajosamente enfrenta autores clássicos como Gilberto Freire, Oracy Nogueira e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, sem intimidar-se com os cânones. Também destrincha números com uma lógica matemática afiada. Há vários pontos importantes no persuasivo texto de Ali: 1. ao somar pretos e pardos, as estatísticas do IBGE forjaram a categoria de negros criando uma distinção entre não-brancos e brancos; 2. a criação da categoria raça – em si discriminatória – não tem aplicabilidade prática na seleção de alunos; 3. a percepção de que há um imenso preconceito contra os pobres, independentemente da cor dessa pobreza; 4. a denúncia de que, na adoção do regime de cotas para ingresso nas universidades, 19 milhões de brancos pobres ficarão de fora. Ali afirma ainda que não existem impeditivos jurídicos para a ascensão econômica dos negros e, embora admita o racismo, não atribui a ele a desigualdade entre brancos e negros. Se, segundo o seu diagnóstico, é verdade que o fator principal de exclusão é a pobreza, então a saída seria educação básica de qualidade para todos, independentemente da cor da pele, como ele explica nessa entrevista: Num dos seus argumentos mais sólidos contra as cotas você afirma que não há discriminação racial no Brasil. O que diferencia racismo de discriminação racial? O que eu digo no livro é que não somos estruturalmente racistas. Desde a República, nossa legislação é a-racial. Não há barreiras institucionais contra negros, nunca houve. Nosso arcabouço jurídico também pune o racismo. Desse ponto de vista, não existe mesmo discriminação racial, as portas estão abertas a pessoas de todas as cores. Mas eu não nego o racismo. Ele existe onde quer que haja pessoas reunidas, infelizmente. É uma praga. Devemos estar sempre vigilantes. Com o nome que carrego e tendo a origem que tenho, eu mesmo já experimentei racismo. Fico bravo quando dizem que não posso comparar a minha dor com a que sente um negro vítima também de racismo. Digo no livro que posso afirmar que um arranhão dói menos do que uma amputação, mas ninguém pode dizer se alguém sofre mais ou menos diante de uma manifestação racista. Apesar disso, estudei o que quis e consegui os empregos que meu mérito permitiu. Nunca ninguém quis saber se eu era muçulmano ou cristão. Isso em outros países é inimaginável. Este nosso ativo – uma tolerância maior – não pode ser desprezado. Não podemos brincar com o risco de deflagrar o ódio racial entre nós. No livro, busquei três objetivos. O primeiro é mostrar que o conceito de “negro” que justifica as cotas inclui os pardos de todas as tonalidades, dos mais claros aos mais escuros. Só assim, somando-se negros e pardos, o Brasil é a maior nação negra do mundo depois da Nigéria. Ocorre que os pardos, de todas as tonalidades, ajudam a engrossar as estatísticas que justificam as cotas, mas na hora de se beneficiar delas ficam de fora: na UnB e na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, há uma triagem com fotos: os mais claros ficam de fora. Nas outras, está dito que o negro que não for negro deve ser punido, se tentar entrar como cotista. Mas quem dirá quem é negro negro? Isso tudo é uma loucura. A segunda coisa que tento mostrar é que as estatísticas no Brasil de fato mostram uma desigualdade entre negros e brancos, na média (embora o negro médio e o branco médio não existam, sejam construções teóricas). Mas nada nas estatísticas autoriza alguém a dizer que a razão da desigualdade é o racismo. Nada. Essa é uma leitura usurpadora das estatísticas e, no livro, em linguagem fácil, eu tento explicar por quê. A terceira coisa que tento fazer é mostrar que tudo indica que a razão da desigualdade seja a mais óbvia do mundo: é a pobreza que explica tudo. Se negros e pardos são a maioria entre os pobres, é natural que eles tenham indicadores piores do que os brancos. Mas não se pode esquecer que os brancos pobres são 19 milhões no país. Deixar esse pessoal de fora dos benefícios é uma tragédia, que não pode acabar bem. Um dos argumentos dos defensores das cotas é o caráter de reparação histórica aos descendentes de escravos. Esse é o único ponto que você não chega a contestar no livro. Por que? Eu repetiria o que diz o meu amigo, o historiador José Roberto Pinto de Góes. Para o escravo que morreu no tronco, açoitado, humilhado, que reparação pode existir hoje? Nenhuma. Ele está morto, e devemos tê-lo como um herói. Cotas para os vivos não reparam o passado. É um engano pensar assim. 87% dos brancos brasileiros têm mais de 10% de ancestralidade genômica africana. Nos Estados Unidos, esse número cai para apenas 11%. Ou seja, no Brasil, todo mundo é um pouco negro. Somos uma mistura, e essa é a nossa beleza, a nossa virtude. Como reparar na geração atual os males infligidos às gerações passadas, se, hoje, temos todos mais ou menos a mesma mistura. Você diz que é a desigualdade social e não o racismo que dificulta o ingresso dos negros nas universidades. Você é a favor de algum tipo de política de cotas por corte de renda, de forma a beneficiar os pobres? Eu diria que entre cotas raciais e sociais eu fico com as sociais. Mas não acho que resolvam. Só uma coisa resolve: investir pesadamente em educação. Não gosto dos que dizem que isso leva tempo. Não leva. Em 11 anos, formamos uma geração inteira de brasileiros em boas escolas. Tudo isso é desculpa para não investir onde é preciso. Vá ao site do INEP e veja que a maior parte de nossas escolas não têm laboratório de ciências, sala de informática. Não têm nem bibliotecas. Como queremos falar de educação num quadro desses? O Fundeb nem sequer foi aprovado. E mesmo que o seja, ele prevê investir no primeiro ano R$ 2 bi, menos de um quarto do que se investe no Bolsa-Família, um nada. No Brasil, infelizmente, temos a mania de buscar soluções fáceis. Educação é importante? Então ponha-se na Constituição um percentual mínimo para se investir em educação. E na mesma hora, o que é percentual mínimo vira percentual máximo. Os governantes dizem orgulhosos: eu invisto o que a Constituição manda. Deviam investir muito, muito mais. Só assim vamos sair do atraso. A educação básica fundamental e universal é uma saída inquestionável, mas de longo prazo. Que tipo de providências se poderia tomar até que o investimento em educação venha a dar resultado? É preciso equipar a escola, dar salário e dignidade aos professores, investir em novos métodos. Ninguém tem de inventar a roda. Basta olhar outras experiências internacionais. O que não dá é ficar adiando o futuro.
Editado por Giulio Sanmartini às 8/21/2006 04:12:00 AM |
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