Etienne Douat
"Eu sou você amanhã" – Lembram da frase? Era dita em uma propaganda de vodka e ficou famosa. Tornou-se moda citá-la em conversas.
Parafraseando: O Rio é o Brasil amanhã. Poderá ser!
O que lá acontece é o sonho de dez, entre dez baderneiros anarquistas: A ausência total do Estado, nas suas mais básicas responsabilidades de concessionário do poder de organizar a sociedade.
O professor Arthur Gianotti, da USP, em artigo na Veja, falando da corrupção “encruada” no Estado brasileiro, usou uma frase que, de forma elegante, resume o caminho que estamos tomando: “...o tamanho da corrupção altera suas formas. O que estamos vendo hoje é que ela chegou junto do coração do sistema. E sabe porquê? Porque o sistema foi ético, por absurdo que possa parecer. Os mafiosos encontraram a porta aberta, invadiram a casa dos puros e ainda se cobriram com o manto da ética... “ – complemento-a: E chegaram ao requinte de legislar a favor do crime!
O Rio de Janeiro vive uma situação insólita. Uma cidade suja, mal cuidada, desorganizada, violenta, poluída, é cantada em verso e prosa como a “cidade maravilhosa”, a porta de entrada do turismo brasileiro. Vende a estrangeiros, principalmente europeus e americanos, os mais “chegados” a exotismos terceiro-mundistas, pacotes turísticos que incluem, além de turismo sexual, “safáris” em favelas e “estágios sociais” em escolas mantidas por ONGS, tudo autorizado e “protegido” pelo crime organizado. É uma espécie de “jardim zoológico ao contrário”, onde a pobreza e o crime são mostrados como uma espécie de auto-flagelação intelectual justificada ideologicamente. Os “turistas”, excitados, saem com duas certezas: Primeiro que viveram uma situação de real perigo, dado que são informados que as pistolas e metralhadoras que viram pelo caminho não são de brinquedo, e de quebra, levam a convicção: a de que, ali, definitivamente, não existe Estado organizado. Uma espécie de Parque Temático Haitiano-Tupiniquim.
Ajudando a formar a opinião dos “excitados” turistas, os jornais da noite, ao mesmo tempo em que noticiam as belezas naturais, as praias, as belas mulheres, o carnaval, mostram, com requintes de superprodução o último assalto a ônibus de turistas estrangeiros na saída do aeroporto Tom Jobim. Repórteres falam, alegremente, dos belos hotéis, da bela orla de Copacabana e Ipanema, do Pão de Açúcar e do Corcovado, para, em seguida, com súbita mudança para expressões graves, noticiarem que mais um ônibus foi incendiado, junto com os passageiros, com requintes de crueldade, por bandidos, na Avenida Brasil. Em seguida, já com mais “naturalidade”, descrevem o último tiroteio cerrado da madrugada na Linha Vermelha. De vez em quando, noticiam o inacreditável: Uma velhinha qualquer, acocorada no seu apartamento de frente para o “morro”, defendendo-se das balas, filma, valentemente, o tiroteio do dia e identifica todos os líderes criminosos da favela vizinha. Os telespectadores, abobalhados com a coragem da velhinha, enaltecida pelo alegre repórter, esquecem de questionar porquê, diabos, a polícia não teve a mesma idéia! Patético e cômico, se não fosse trágico!
Nos dias seguintes, sociólogos, criminalistas, representantes dos direitos humanos, Religiosos e outros tantos grupos que estudam o assunto, deleitam-se em tergiversar sobre os motivos de tamanha violência e chegam, invariavelmente, ao mesmo diagnóstico: Falta de investimento em educação, desemprego e injustiça social. Parecem cachorro correndo atrás do rabo.
Analfabetismo, desemprego, injustiça social podem ser ingredientes, mas, estão longe de ser o motivo. Fosse assim, mais da metade da população do Brasil seria de criminosos, o que não é verdade. Além do que, se consultarem a corajosa velhinha, aquela da filmadora, agora escondida fora do apartamento para não sofrer represálias, verão que, mesmo na favela, são algumas dezenas que aterrorizam milhões. Depois, o Congresso nacional mostrou que os bem remunerados podem mostrar uma tendência ao crime bem mais sutil e cruel, ao manipular, e roubar, sob o “manto da democracia”, dinheiro de saúde, educação e assistencialismo, de potencial muito mais explosivo e mortal para toda uma geração.
O verdadeiro motivo de toda a violência talvez resida, pura e simplesmente, na falta de autoridade, competência, responsabilidade e seriedade dos homens públicos. Bandido se identifica, processa, prende e, se for de alta periculosidade, isola pelo tempo que for necessário (ah, é bom que se diga, sem acesso a celular, arma de fogo, arma branca ou qualquer coisa que possa induzi-lo ao crime dentro do cárcere). Problema social se resolve aplicando, pelo menos de forma honesta, a tributação imoral que o brasileiro, cidadão-refém paga ao Estado para protegê-lo. Não estou, sequer, falando de competência. Aí voltamos para o círculo do crime.
Assim, a cada escaramuça diária na batalha urbana carioca, a exemplo do “carro bomba das oito da manhã”, no Iraque, “decreta-se” o problema como brasileiro e volta-se à velha cantilena do trio educação-desemprego-injustiça social, e vão todos dormir pensando no debate do dia seguinte.
Permito-me discordar desse diagnóstico clássico e torto. A violência do Rio de Janeiro não é um problema brasileiro. Pelo menos não ainda. Em boa parte dos estados e regiões o poder público, apesar dos sérios sinais de obsolescência, ainda exerce a sua autoridade e tem apoio da sociedade para isso. O que assistimos no Rio de Janeiro, já não é mais um problema de segurança pública. É um estado de guerra civil não declarada. É uma questão de segurança nacional. É a suprema distorção dos valores. É o “poder público” pedindo licença ao crime organizado para funcionar.
E chegamos ao paradoxo: A situação, lá, transformou-se num círculo vicioso extremamente perigoso, mas que ainda não se alastrou para o resto do país. Paradoxalmente, entretanto, o poder público tem a oportunidade de enfrenta-la com coragem, energia e eficácia, transformando-o em um exemplo que permita recuperar a crença e a confiança da sociedade nas suas instituições. Com isso, daria inicio a um círculo virtuoso de apoio que permitiria iniciar-se uma espécie de resgate moral do país.
Talvez os políticos descubram que buscar integridade poderá atrair muito mais votos do que “garimpar” privilégios.
Entendo que o esforço tem que ser total, e com toda a força necessária, concentrado no Rio de Janeiro, que é, de longe, o exemplo mais evidente do descalabro a que se pode chegar sem algo que possa ser chamado de governo.
Caso não seja assim temo que, em alguns anos, estaremos vivendo o problema em todo o país. A diferença é que, talvez, então, não tenhamos mais país para recuperar, e estejamos lutando pela sobrevivência. Literalmente!
Editado por Ralph J. Hofmann às 1/01/2007 04:20:00 PM |
|