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O ADVOGADO DO MARQUÊS
por Olavo de Carvalho no Diário do Comércio

Sob o título Emir Sader e o terror judicial , em documento distribuído através da internet por uma tal Rede de Cristãos (não sei que raio de coisa é isso), um professor de nome Bajonas Teixeira de Brito Júnior empreende a apologia do marquês de Sader , mas, em contraste com o ambíguo e recalcitrante manifesto que comentei no DC na semana passada, não tenta escapar das implicações do que diz. Bem ao contrário, busca levá-las às últimas conseqüências, solidarizando-se não somente com o criminoso mas com o crime, ao ponto de cometê-lo de novo por sua própria conta e risco.
Repetindo e assumindo como sua a imputação criminal indevida que o marquês dirigiu ao senador Bornhausen, o prof. Teixeira transcende portanto os limites da mera solidariedade, entrando com fé e orgulho no terreno da cumplicidade ativa. Se o marquês , diante de tão fraterna atitude, não der pelo menos um beijo na testa do sujeito, direi que não tem coração. Muitos falaram em defesa do réu condenado -- mas só o prof. Teixeira se dispôs a ir para a cadeia com ele. Não é todo dia que se encontra um amigo assim.
Tamanha afeição, em verdade, não é gratuita. Nasce da profunda afinidade entre a forma mentis do acusado e a do seu defensor, se é que esta se pode medir por uma amostra tão breve quanto a que ele nos oferece nesta peça magistral de saderismo aplicado que é a circular da Rede . Sou também induzido a crer nessa hipótese mediante a ponderação de que ambos, réu e advogado, têm em comum o fato de serem professores de filosofia formados por universidades brasileiras, o que já bastaria para torná-los metafisicamente indiscerníveis entre si.
Se o leitor permanece incrédulo, sugiro-lhe que leia o seguinte parágrafo do prof. Teixeira e verifique por si mesmo se o modus argüendi aí empregado não é exatamente o mesmo de O Mundo às Avessas : “A expressão usada por Jorge Bornhausen é racista e extremamente ofensiva, visto o contexto negativo em que a palavra ‘raça’ aparece aplicada ao PT, ao que se deve somar o histórico sombrio e mesmo tenebroso que o termo ostenta. Em primeiro lugar, a função da palavra não é classificatória, não sendo empregada como um mero substantivo, antes servindo a uma substantivação que busca inferiorizar e humilhar aquele a quem se refere. Ora, em um país que inicia sua luta contra a discriminação racial, o emprego de forma vexatória da palavra ‘raça’ não pode ser admitida sob nenhuma condição. Condenar quem percebe e repudia esse emprego é ofender a capacidade de julgamento e discernimento de milhões de brasileiros. E punir a inteligência de muita gente. ”
Desde logo, designar como “raça” um grupo humano unido por laços não raciais é de fato pejorativo. É pejorativo justamente porque degrada esses laços, desprezando sua natureza específica de nexos políticos, religiosos, espirituais ou éticos e reduzindo-os a uma mera afinidade corporal, biológica, genética, como a que existe entre os vários membros de uma raça de porcos, de patos ou de galinhas. Dizer que os petistas são uma raça é dizer que eles não se reúnem movidos por ideais éticos ou políticos, bons ou maus, mas sim pela simples força da programação genética hereditária, como os gansos se reúnem com gansos e os macacos com macacos. E é claro que quem diz isso não o enuncia literalmente como verdade objetiva cientificamente comprovável, mas como exagero deformante e caricatura verbal, como figura de linguagem usada com propósito insultuoso, como bem viu o prof. Teixeira, para “inferiorizar e humilhar aquele a quem se refere”, isto é, no caso, o grupo petista.
Mas a força do insulto reside precisamente na depreciação da natureza dos laços que unem esse grupo. Está patentemente implicada nessa depreciação a crença de que, entre seres humanos, a pura ligação racial é inferior a outros tipos de afinidades, sociais, culturais e suprabiológicas, pelas quais eles possam estar unidos.
Ora, acontece que essa crença, em vez de ser racista, é manifestamente o oposto do racismo. Para o racista, os nexos raciais, em si, não são inferiores nem desprezíveis: são o elo essencial que une os seres humanos e determina a sua conduta social e histórica. Hitler e Goering não poderiam jamais se sentir ofendidos se ouvissem dizer que sua colaboração política nascia diretamente da sua afinidade racial de arianos. Ao contrário, proclamavam-no abertamente e com orgulho.
A palavra “raça”, para o racista, nada tem de pejorativo: é um conceito filosófico e científico respeitabilíssimo, na verdade o conceito fundamental da sua visão do mundo e o ponto mais alto que, no seu entender, a capacidade explicativa humana pode alcançar.
Desprezível, sim, é não ter raça, é ser mestiço, estar portanto desprovido de afinidades genéticas com o grupo e reduzido portanto a só poder travar com os demais membros da sociedade relações espirituais, ideológicas, etc., isto é, relações sem fundamento racial. Desprezíveis são também, nessa perspectiva, as raças ditas inferiores, mas é claro que aí a inferioridade delas não consiste em serem raças, pois a superior também o é, mas sim em não terem tais ou quais virtudes que a raça superior, com modéstia exemplar, atribui a si mesma. Dada a simples relação lógica imediata entre os conceitos, não é possível depreciar ao mesmo tempo uma raça como geneticamente inferior e os nexos raciais como forma de afinidade inferior entre os seres humanos.
Exaltar uma raça e depreciar outra é, na mesma medida, exaltar as relações raciais como importantes, valiosas e significativas. Pela mesmíssima razão, depreciar um grupo não racial chamando-o de raça é, obviamente, usar contra ele o mais anti-racista dos insultos.
Tais considerações nascem da pura compreensão do sentido textual, contextual e dicionarizado das palavras, compreensão que deveria ser imediata e instintiva para qualquer pessoa alfabetizada, mas que, a julgar pelo documento citado, está incalculavelmente acima da capacidade do prof. Teixeira. O que ele faz não é um deslize de interpretação, é uma inversão tão drástica e radical do sentido das palavras interpretadas, que lhe bastaria um pouquinho de capacidade de leitura, um pouquinho só, para preservá-lo de erro tão medonho e imperdoável.
O prof. Teixeira, tal como seu amado marquês de Sader , é um analfabeto funcional sem as qualificações lingüísticas mínimas para lecionar em escola primária, embora suficientes talvez para freqüentá-la. Na verdade, chamá-lo de analfabeto funcional é bondade minha. Ele é semi-analfabeto no sentido literal e estrito do termo. Se não o fosse, não poderia escrever que, na declaração do senador Bornhausen, a palavra “raça” “não é empregada como um mero substantivo, antes servindo a uma substantivação”. É simplesmente impossível substantivar o que quer que seja sem empregar o termo respectivo como substantivo ou, se quiserem, “mero substantivo”. Ademais, a conotação semântica de um substantivo não muda a categoria morfológica a que ele pertence.
O termo “raça” é substantivo e só pode ser usado como tal, seja em sentido racista ou anti-racista, insultuoso ou laudatório. O homenzinho, evidentemente, não tem a menor idéia do que seja um substantivo, muito menos uma substantivação. Também não conhece sequer a concordância de gênero, já que diz que o “o emprego ... não pode ser admitida”. Nem discuto a ignorância histórica um tanto proposital do referido, que suprime um século e meio de lutas em prol dos negros e atribui ao PT a inauguração triunfal do anti-racismo brasileiro. Também não discuto os precedentes a que ele apela, “xingamentos que mereceriam punição imediata”, entre os quais falta, é claro, toda menção ao célebre rap de Gabriel, o Pensador, “ polícia, raça do c... ”, que, malgrado o insulto duplo e o apelo explícito à matança de policiais, foi defendido na ocasião por toda a esquerda falante, embora o povão fosse de opinião diversa, apedrejando o cantor.
Não discuto isso. Aliás nem discuto nada. Discutir com ignorante é lavar cabeça de jumento. Eles que discutam entre si, já que para isso receberam a habilitação oficial que lhes dá acesso aos ócios acadêmicos e a proventos extraídos da bolsa do povo. Asinum asinus fricat : que os asnos esfreguem os asnos. Mesmo que a esponja seja de dinheiro público.


Editado por Giulio Sanmartini   às   11/17/2006 03:37:00 AM      |