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ANNA KARENINA
Por Laurence Bittencourt Leite, jornalista

A literatura mundial tem legado algumas obras que realmente podem ser consideradas cânones, impares. São livros que deixam uma marca profunda no espírito de quem lê, independente da época em que foram escritos, como também deixam uma marca profunda pela estrutura narrativa apresentada, pela criatividade no enredo, pela universalidade do conteúdo e do tema, e por algo que é difícil de precisar, mas que toca de perto cada um de nós em sua singularidade, fazendo com que cada um dos leitores se sinta como um participante de uma grande cadeia coletiva. Um livro que nos toca, fala baixinho como um amigo do peito. Um desses livros certamente é “Anna Karenina” do russo Leon Tolstoi.
Publicado em 1877, o romance realista de Tolstoi é um fenômeno. Está tudo ali sobre a natureza humana. Tudo. De Freud a Lacan está tudo ali. No fundo o romance faz parte da virada moralista do escritor russo que tanto incomodou a pensadores como Walter Benjamim e George Luckács. Mas “Anna Karenina” não é famoso apenas por ser um livro com final moral. Não, ou não apenas isso. Tolstoi era por demais perspicaz para saber ou ter a natureza humana como apenas moral. No livro Tolstoi pode até ser acusado de moralista pelo seu final, mas a moral existe e ele sabe como ninguém jogar com isso. É isso que distingue um grande autor. A capacidade de entender e expor de uma forma impar as ambigüidades e ambivalências humanas. De mostrá-las a nú, se tornando nesse sentido revolucionário.
É possível dizer que no livro, Tolstoi quis desvendar o desejo proibido a exaustão. A obsessão de Vronski por uma mulher casada, numa paixão fulminante, até conseguir o objeto proibido, parece ter como contrapartida um desenlace fatal. Tolstoi sabe disso, e é por isso que a posse e o amor por algo proibido pela sociedade russa do século XIX pedem seu preço. Entre outras coisas Tolstoi nos dá um enredo perfeito sobre a sociedade russa da época.
O romance para quem nunca leu conta a história de um amor avassalador da bela Anna Karenina, que ao ir visitar o irmão em uma viagem de Petersburgo para Moscou conhece na chegada do trem o jovem oficial Vronski que na troca de um olhar se apaixona perdidamente por ela. Anna é casada, mãe de um filho, mas seu casamento é vazio, ocorrido quando ela era ainda muito jovem, com alguém bem mais velho que ela. A vida sexual do casal está morta e é na verdade a falta de alguém que a coloque na posição feminina (a “felicidade” dela, como diria os lacanianos, está restrita ao filho e que por isso mesmo a inviabiliza de se sentir realizada enquanto mulher) é a causa principal da sua retribuição a impetuosidade do amante. Mesmo resistindo no inicio, o desejo fala mais alto.
O romance é longo e tem momentos fortes sobre a insondabilidade do ser humano, além de falar como nenhum outro sobre a sociedade rural aristocrática da Rússia czarista. Mas foi Freud que explicou como poucos que toda paixão cobra seu preço e que o determinismo do que ele chamou de inconsciente parece ofuscar a razão. É algo dialético. O desejo precisa ser realizado, mas a realidade existe. Nesse conflito, é que percebemos com toda clareza, ao longo da leitura, que quanto mais Anna Karenina tenta fugir de um destino, mas ela cai nesse mesmo destino.
Se o desfecho parece moralista, Tolstoi nos presenteia por toda narrativa, mostrando os preconceitos e a hipocrisia da sociedade russa do século XIX. Nesse sentido, para o dissabor de muitos, Tolstoi se mostra não um moralista e sim um revolucionário autêntico. Na verdade pode-se dizer que “Anna Karenina” é um dos mais brilhantes tratados psicológicos já escrito. Se o romance tem inicio com a frase não muito famosa de Tolstoi onde ele diz, "As famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”, poderia muito bem ao leitor mais atento e criterioso, inverter a frase que não se perderia nada. Os romances realistas podem até ter sido ofuscado pela literatura moderna com suas inventividades formais, mas não perdemos nada ao voltarmos a eles, nessa grande saga que a criatividade humana nos legou. O grande escritor tem a capacidade de nos dizer aquilo que somos, fomos ou que poderíamos ter sido. E isso, certamente, é imortal.


Editado por Adriana   às   11/24/2006 09:41:00 AM      |