Por João Ubaldo Ribeiro no Diário da Manhã (Goiânia) Não, desta vez não estou fazendo minha brincadeira chata sobre como pegar o dicionário é um bom exercício físico, estou é aplicando um sério teste de civismo nos leitores, os quais claro que chamaria de “esta platéia ma-ra-vi-lho-sa”, se isto aqui fosse um show de tevê. Se vocês não sabem de que estou falando com as palavras do título da coluna de hoje, vocês me matam de vergonha. Não me refiro nem ao que elas querem dizer, porque, em casos assim, isso costuma ter pouca ou nenhuma importância. Eu mesmo passei boa parte da minha infância, puberdade e acho que adolescência repetindo essas palavras sem ter a mínima idéia do que significavam, mas na plena certeza de que estava reiterando algo pelo menos altamente patriótico. Vamos lá, não é possível. Alguém aí tem que saber. Pelo menos os mais coroas têm que saber. Os jovens, segundo ouço, não são obrigados a saber nada desses assuntos, porque hoje eles não são mais ensinados, como eram antigamente. Façam umas apostinhas aí (um amigo e companheiro de boteco, o irrepreensível Carlinhos Judeu, topa fazer corretagem e cobra uma comissão insignificante, atendendo no famoso boteco Tio Sam, horário do expediente de fim de semana). Eu até ajudo: é de um hino. Claro, claro: agora que eu disse que é de um hino, basta chutar até bater no hino certo, mas chute é golpe baixo e quem chutar, acertar e quiser levar a grana da aposta vai ter que dizer, do que duvido muito, mais algumas palavrinhas do hino que não sejam a do manjado estribilho, que também não vou soprar, porque assim já é facilitar demais.
Dou outra colher-de-chá, até parece que vocês têm carteira de sócio de alguma promoção. No mesmo hino, diz-se também “Eia, pois, brasileiros, avante!/Verdes louros colhamos louçãos!” Certo, não posso ver a cara de vocês no momento, mas, por alguma razão, não sinto firmeza. Não lhes dá um friozinho na barriga pensar em ficar loução e colher louros? Servia até para nome de bloco de carnaval — “Os louçãos do Baixo”. Haveria quiçá o risco de esse bloco ser tido como gay, mas ninguém liga para isso, até porque piada de gay agora já está se podendo contar novamente, pois, de acordo com o que me contaram, eles não são mais minoria e perderam certos privilégios atinentes a essa condição, assim como a antigamente sofrida categoria dos cornos, se bem que haja historiadores que arguam que estes nunca foram minoria. Bem, já passei pela vergonha, só uns dois acertaram. Mas, minha gente, que vexame! Essas palavras candentes fazem parte do Hino da República! Lembram agora? “Seja um pálio de luz desdobrado,/Sob a larga amplidão destes céus/Este canto rebel que o passado/Vem remir dos mais torpes labéus!” Não, não lembram, que confissão deplorável — e ainda haverá os cínicos que persistirão em não saber e não querer saber os significados de “pálio” (hoje marca registrada da Fiat, acho que a citação aqui é obrigatória, questão de copyright), “remir”, “torpes” e, notadamente, “labéu”. Esta última é, inclusive, traiçoeira, porque tem um sonzinho meio metido a besta, que dá a impressão de que ela designa alguma coisa fina. Acho que, considerando o vocabulário hoje dominado pelo famoso brasileiro médio — inferior, no nível universitário, a 48 vocábulos, entre os quais “parada” e “valeu” batem recordes mundiais, cada um com mais de dois mil significados diferentes, conforme os gestos e/ou grunhidos que acompanhem sua emissão —, a palavra “labéu” poderia reingressar bastante enriquecedoramente na língua, como na frase “valeu, é uma parada superlabéu, mermão”. Contudo, labéu, como acho que se depreendeu da frase com “remir”, não quer dizer nada de positivo, nem é adjetivo. Quer dizer mancha, nódoa, mácula, desonra, algo assim. Ou seja, quando proclamou a república, o mesmo pessoal que está aí já botava a culpa no governo passado, se bem entendo o verso do hino. A culpa era toda de d. Pedro II, que, aliás, também não viu nada, nem sabia de nada, deu baile da Ilha Fiscal e não queria sair de Petrópolis, enquanto a turma aproveitava para dar uma proclamadazinha de república aqui embaixo. Foi um barato, a proclamação da república, foi ou não foi? Daí em diante estava tudo resolvido, tudo democrático, todo mundo livre, feliz e ganhando a vida numa boa. Claro, a felicidade nunca pode ser completa e primeiro eles precisaram exterminar os matutos de Canudos, grave ameaça à fantástica república, cometer um par de estripulias em Santa Catarina (Florianópolis, eu hein? perguntem a qualquer catarinense), estabelecer uma ditadurazinha e depois outra e assim por diante, de maneira que — está certo, vamos reconhecer — ainda não houve tempo para a república dar a partida à vera e às vezes parece até que bateu sua última biela. Mas nada disso, meus louçãos compatriotas. Domingo que vem, a gente já vai amanhecer rindo para as paredes, com a oportunidade — sacaram agora aonde eu queria chegar com esta preleção dominical de civismo? — de remir do passado os mais torpes labéus. Haja Omo, Varsol, Creolina e Lysoform (est’último já receitado pelo presidente em pessoa, para desinfetar a boca de quem não notou que ele está de botox novo e deu umas outras guaribadas no visual, embora eu ainda não conheça do tema o suficiente para saber se ele deve ser classificado como metrossexual ou retrossexual, não entendo muito de moda). Ainda temos uma semana inteira para resolver entre duas opções tão opostas, excitantes e arrebatadoras, para remir do passado pelo menos uns dois torpes labeuzinhos, se não é pedir muito. Quanto a vocês, não sei, mas eu já resolvi qual é o torpe labéu de que quero remir o meu passado. Só não sei se vai dar, mas isso vocês também não sabem.
Editado por Giulio Sanmartini às 10/23/2006 02:26:00 PM |
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