Por Gaudêncio Torquato em O Estado de São Paulo
Pois é, a passagem do comunista Aldo Rebelo pela Presidência da República não causou comoção. Nem mesmo despertou lembrança dos tempos em que se associava o comunismo a satanás. Um comunista na direção do País - apesar do ineditismo registrado por manchetes - não é mais considerado estranho no ninho. Ainda mais Rebelo, com seu jeito de guardião do Santo Sepulcro. E, se, em vez de um dia, seu mandato presidencial durasse mais tempo, teria ele condições de instaurar um regime comunista e, de canetada, estatizar empresas privatizadas, como a Vale do Rio Doce, conforme defende o ideário do PC do B? A resposta é não. A revolução socialista, pressupondo a tomada do poder pelo proletariado e a destruição do Estado burguês, foi trocada pelo centralismo ideológico. Ademais, já não existem partidos de massa, nos moldes inventados pelos socialistas no fim do século 19. Os grandes partidos socialistas europeus se integram cada vez mais à ordem vigente, renunciando à socialização dos meios de produção. Apesar de contestarem o valor moral do capitalismo, aplaudem sua eficiência. Por isso, preferem pisar na realidade a flanar nas utopias.
A transformação de partidos de massas em partidos de quadros, fragilmente organizados, fenômeno que se observa em todos os quadrantes, nos obriga a refletir sobre nosso futuro. Se nem o minúsculo PC do B tem pacote ideológico para exibir (e, se tem, fica escondido), imaginem as siglas fortes. Sua identidade está esgarçada e seus corpos amorfos servem de massa de manobra. (Por isso Lula se apressa a fechar adesões no varejo; já conta com cerca de 330 parlamentares.) Com perspicácia, Maurice Duverger, o pensador francês, fez, há tempos, o prognóstico: “O Brasil só será uma grande potência no dia em que for uma grande democracia. E só será uma grande democracia no dia em que tiver partidos e um sistema forte e estruturado.” Nossa vida partidária, vale lembrar, começou em 1837, na monarquia, com os Partidos Conservador e Liberal, que comandaram a vida institucional até o final do Império. O germe de ambos se fez presente em todas as fases de vida política nacional, desembocando, depois de 1945, na liberal UDN, no conservador PSD e no varguista PTB, três velhas matrizes do atual leque partidário. A pulverização partidária recente começa com a Arena e o MDB, criados pela ditadura militar e extintos em 1979. Deles se origina o ciclo da cissiparidade, a divisão de um partido em dois ou mais, como foi o caso do PFL, criado a partir do PDS do início da década de 80, que deu respaldo à segunda fase do ciclo militar; do PSDB, tirado de uma costela do PMDB; do PDT, extraído de uma banda do antigo PTB getulista; do PPS, cuja origem é o PC, o partidão, que abrigou o maior número de comunistas. Breve, estaremos abrindo o ciclo imposto pela cláusula de barreira. E a questão voltará à ordem do dia: como se comportará a nova organização partidária? A reforma política - fidelidade partidária, voto distrital, financiamento público de campanha - pouco adiantará se os partidos não tiverem doutrina. Sinais de mudanças estão sendo dados pelo PSDB e pelo PT. Os tucanos sabem que seu partido não expressa os anseios das massas. Com dificuldade, o tucanato senta praça em plagas afastadas dos grandes centros. O ideário social-democrata, que inspirou os criadores, estiolou-se quase por completo, saindo o partido da margem esquerda para ocupar o centro do arco ideológico, aproximando-se da direita, onde pontua o ex-aliado PFL, ícone do liberalismo. O PSDB, com suas vaidades e falta de ações afirmativas, deixou o PT abrigar-se sob o colchão social, onde dorme praticamente sozinho, mas o conforto foi proporcionado pela política “neoliberal” tucana. Ante a perspectiva do enfrentamento em 2010, os dois buscarão uma configuração capaz de resgatar o verniz ideológico corroído. Para tanto será necessária uma reengenharia de organização que leve em consideração a descentralização e a conseqüente ocupação de espaços regionais, além da abertura das cúpulas dirigentes e de programas de alto impacto. Do PMDB nada se pode esperar. Terá sempre prato cheio no banquete governamental. Continuará na estratégia de buscar votos com o poder dos cargos. O PDT, se não dobrar a vértebra, conservando-a sempre ereta, terá condições de ganhar milhões de adeptos insatisfeitos com a tibieza de tucanos e desconfiados das maracutaias petistas. Trata-se de sigla com potencial de crescimento. O PSB precisa esclarecer qual é sua proposta socialista. O PFL precisa corrigir a rota. Urge limpar a pecha de partido direitista com um discurso para as classes médias e disputar voto com tucanos e petistas. O PPS, futura Mobilização Democrática, continuará no limbo, caso Roberto Freire não lhe dê escopo. Não há perspectivas para inserir o PP, o PTB e o PL na seara doutrinária. Serão siglas funcionais de negociação. E o que esperar do PSOL, de Heloísa Helena, e do PC do B, do comunista que Lula quer entronizar, mais uma vez, na presidência da Câmara?Uma dose de utopia seria interessante. Pois, como ensina Jean-François Revel, “a utopia não tem obrigação de apresentar resultados. Sua única função é permitir aos seus adeptos a condenação do que existe em nome daquilo que não existe”. Por último, caberá aos partidos uma varredura nos cordéis da crise da democracia representativa, agravada, no Brasil, pelas falcatruas do cotidiano político. Significa, sobretudo, aspirar o cheiro das ruas. Há um imenso vácuo no meio da sociedade por onde circulam novos movimentos e uma miríade de organizações não-governamentais que atuam na esfera das micropolíticas, principalmente em espaços debilmente ocupados pelo Estado, como a igualdade de gêneros, direitos humanos, meio ambiente e minorias. Como correias de transporte, os partidos têm o dever de dar vazão a essas demandas. Haverá inspiração para tanto?
Editado por Giulio Sanmartini às 11/19/2006 01:11:00 AM |
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