Por Arnaldo Jabor em O Povo (Fortaleza – CE)
O tempo atual é Renascença ou Idade Média? Os acontecimentos estão inexplicáveis, pois a barbárie das coisas invadiu o mundo dos homens. O socialismo não deu certo, o capitalismo global não trouxe paz nem progresso, tudo que depende da vontade dos homens e de seus sonhos de controle não chega a um final feliz. As coisas têm vida própria. O mundo está regido por uma tumultuosa marcha de fatos sem causa, de acontecimentos sem origem, de objetos sem sujeitos. Temos acesso a uma informação infinita que não se fecha; temos mais ciência e menos entendimento. As utopias não rolaram; Kafka e Beckett sacaram o lance mais na mosca que os ideólogos. Esperando Godot é mais profundo e profético que 100 anos de esperanca social. Hoje, somos objetos de um sujeito imenso, sem nome, sem olho, misterioso, que só entenderemos depois que o tempo tiver se esgotado, quando for tarde demais. Por que estou com essas angústias filosóficas? Bem... porque no Brasil estamos diante do mesmo dilema: Renascença ou Idade Média, progresso ou regresso?
Pensamos atrás das coisas. Vivemos uma modernidade veloz e falamos um discurso antigo. As idéias não correspondem mais aos fatos. As palavras que eram nosso muro de arrimo foram esvaziadas de sentido. Por exemplo, uma palavra que era pau para toda obra: futuro. Que quer dizer hoje? Antes, futuro era um lugar onde chegaríamos um dia, que nos redimiria de nossos sofrimentos no presente. Agora, o termo futuro tem uma conotação incessante, como se já estivéssemos nele, fazendo de nosso presente uma época provisória, uma mutação angustiante, sempre se desvalorizando. Estamos com saudades do presente, que nos escapa como um passado, enquanto o futuro não pára de não chegar. Outra palavra: felicidade. Ser feliz hoje é excluir o mundo em torno, a visão das tragédias. Ser feliz é uma vivência pelo avesso, pelo não. Ser feliz é não ver a miséria, não pensar nas catástrofes, é não se deixar impressionar pelos dramas do País. Outra palavra: miséria. A miséria sempre nos foi útil. Diante dela tínhamos a vantagem da compaixão. Era doce sentir pena dos infelizes. Hoje, diante das soluções impossíveis, diante da ligação imediata que fazemos entre miséria e violência, temos uma espécie de raiva, de irritação aristocrática, ancien regime, contra os desgraçados. Ficamos humilhados diante da impotência das soluções. O pobre virou um estraga-prazeres. Que nome daremos ao desejo de extermínio que começa a brotar nos cérebros reacionários? Exterminar bandidos e excluídos também? Que nome dar às taras de nossos intelectuais incompetentes? São dois tipos básicos que pululam: o gênio inútil e o neocretino. O gênio inútil sabe tudo e não faz nada. O neo-idiota age muito, sem saber nada, com sua carinha preocupada de tarefeiro, de burocrata dedicado à causa. E que nome daremos a esse bucho informe que a miséria está criando nas periferias? No crime, surge uma mistura de lixo e sangue, uma nova língua de grunhidos, mais além da maldade, uma pura explosão de rancor, o horror, a crueldade como único prazer. E na criatividade nascente das periferias, como nomear este novo bem dentro do mal? Não é mais proletariado ou excluídos. Surge uma razão dentro da loucura, uma esperança dentro do pesadelo. E na política? Quem somos, o que somos? Neoliberais, velhos radicais, neoconservadores, progressistas reacionários, direita de esquerda ou - hoje no poder - o esquerdismo de direita? Que nome daremos à paralisia da política, ao imobilismo das reformas, à absurda incompetência e desinteresse pelos dramas urgentes? Que nome daremos ao ânimo do atraso, à alma de nossa estupidez? Que medula, que linfa ancestral energiza os donos do poder, que visgo brasileiro é esse que gruda no chão os empatadores do progresso? Vivemos sob uma pasta feita de egoísmo, preguiça, escravismo. Que nome dar a essa gosma que somos? E a palavra-chave de hoje? Democracia. Que é isso? Que quer dizer? No Brasil, democracia é lida como esculacho, zona geral. No entanto, a democracia é o único sistema revolucionário a que devemos aspirar, é a única maneira de espatifar o entulho arcaico, fisiológico, corrupto, patrimonialista que o Estado abriga. Só um choque de liberdade e livre empreendimento pode mudar o País. Mas esta evidência é vista com pavor. Como aceitar o óbvio, que o Estado congestionado, moribundo, só tem impedido o crescimento? Isso vai contra os dogmas dos intelectuais. A maioria dos criticos sociais prefere morrer a rever posições. E, aí, o atraso resiste, bravo, eternizado pela frente única entre a velha direita e a velha esquerda, que continua a agir em nome de uma burra idéia de progresso. E como tudo provoca paralisia, a democracia nos parece lenta, ineficaz. Surge o sonho de um autoritarismo rápido, que mudaria tudo isso que está ai, surge o desejo maluco de se atingir a saude utopicamente, sem curar os males do paciente. Surge a fome de populismo, volutarismo, política mágica ou até antidemocrática para o bem, como proclama o futuro ditador Chávez, agarrado com paixão por Lula, outro dia, falando mal de nossa imprensa, falando mal dos empresarios que constroem o País apesar dele, enquanto financia a ponte venezuelana e o metrô de Caracas, negando as verbas comprometidas ao Rodoanel de São Paulo e à linha amarela do Metrô, enquanto não acha dinheiro para o controle de vôos. Esse mau exemplo de Lula estimula a saudade por um regime que restaure certezas, crenças como: futuro, ordem, nação, identidade, povo. Já está raiando no horizonte do Brasil uma fome de autoritarismo, que é bem mais legível para os paranóicos. Se prevalecer o bom senso, o pragmatismo de Lula, tudo bem. Se ganharem os malucos que o cercam, apertem o cinto que vamos cair, pois não há controle para nosso vôo brasileiro.
Editado por Giulio Sanmartini às 11/21/2006 09:35:00 AM |
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